Sunday, August 17, 2014

O Passeio da Saudade

Neste dia quente de verão, acabei de dar um belo e longo passeio por Praga, pelas ruas das sete diferentes casas onde morei. Sorri melancolicamente olhando para as portas que tanto abri - nalgumas o fiz camufladamente para não ser visto por certas inconveniências. Depois fui me abastecer em cada um dos meus bares favoritos: primeiro o Mandragora, em Vinohrady, para visitar o Milan e a Šarka e ser obrigado a beber um shot de Slivovice caseira, depois fui a Žižkov, o bairro mais alternativo e decadente da cidade, beber cerveja no Herba, pequenino e punk, e depois no Bohužel, onde encontrei os crusties. Já etilicamente alegre, fui petiscar algo no abarrotado Hany Bany, ali pertinho da ponte famosa, e depois voltei a ter sede e fiz nova investida no Atmoška, e ao sair dele bastou atravessar a rua para jantar no Lehká Hlava, o meu restaurante vegetariano favorito, onde comi risotto e bebi limonada com hortelã. Já anoitecendo, fui a um concerto de Blues com Stan The Man no Jazz Republic, onde bebi vinho branco da Morávia, e quando chegou a meia noite fui correndo ao Vagon, onde me desfiz em Rock and Roll antigo e acabei sendo arrastado para dentro do banheiro por uma moça que usava uma camisa de Pink Floyd. Depois, às cinco da manhã, embriagado e satisfeito, fui pelo trilho do elétrico 22 rumando direto a Hostivař, mas a tentação me fez sair na paragem anterior e entrar no Marat'ak, porque, mesmo com a dada debandada, ao menos a Monika estaria lá, além dos velhotes operários carcomidos com quem eu poderia jogar dardos.


Foi um dia em cheio, tipicamente praguense. Obrigado, Google Maps.

Saturday, August 16, 2014

A Plenitude

Vida vivida é vida suada
No rosto estampada
Na pele traçada

É fim atingido
Ferida ardente
Sangue escorrido
Coração consequente

Vida imaculada é vida desperdiçada
Baluarte sem ouro
Cheio de nada

É achado perdido
Tempo corrido
Acaso tramado
Amor racionado

Vida é angústia e satisfação
É a ofegância do risco
Vida é explosão

A plena existência não obedece a caprichos
É entrega profunda que se inflama
Nos empecilhos.

A Lombra

Faz-se prolongar indevidamente, a noite,
Transcorrida largamente pela lentidão dos ponteiros,
De segundos que se arrastam, hipnotizados,
E pelo ritmo atenuado de sapatos estaladiços.
A dança paulatina das árvores ao léu
Interpola a desforra moribunda
No epílogo do limbo urbano;
Escombros humanos soterrados na penumbra,
Na sarjeta,
Na decadência poética,
No esgoto do livre arbítrio,
Dichavando a perdição,
Entornando tinto seco goela abaixo,
Encarando a pose arrogante das gaivotas famintas
E o desfile de carcaças distintas
Na passarela dos emborrachados.

Engolidos pela madrugada desacelerada,
Pela rouquidão da sombra motorizada
Que suga a produção inútil da vida noturna;
Espólios da boemia gentrificada.
Os resquícios de luxúria se dissolvem nas atenuantes,
Nas luzes flamejantes difusas,
Tanto quanto nos dissolvemos nos delírios
Das gargalhadas histéricas
E na leveza desvairada.

A invocação matutina é o absurdo dos sentidos,
É a visão turva e desajustada,
A silhueta trêmula; valsa de cadência cambaleante
Nos passeios padronizados.
Mentes despidas, centrifugadas e aceleradas
Em conjeturas que se sucedem inacabadas.

Thursday, August 14, 2014

Alessandra

Pessoas passam
E por elas passamos
A vida é um amontoado de passados
É como a terra fresca
Que perfuma a manhã bucólica
É como uma melodia
Que soa melancólica
É como tudo o que só é lembrado
Quando é de fato sentido
É como aquele sorriso
Que mais parece um abraço,
Ou um abreijo,
Que nos cobre feito agasalho
E entrelaça afetos
E que como a empatia
Parece um toque de magia

A vida que é feita de acasos
E dos seus enganos
Também é feita de encantos
De partituras e compassos
De presentes que curam passados
De pessoas que vêm e não passam
Por mais que se deem nos passos
Por mais distantes que estejam de um abraço

A vida é a fortaleza das insignificâncias
E a destreza que as transforma em grandezas
E se a vida é feita de tudo o que falta
A vida é feita de ti
Da tua presença dentro de mim
E se na vida há beleza
Ela é a tua existência
Passando e ficando
No rasto de cada vivência.


Nota: dedicado a Alessandra Caronna, italiana de Palermo, uma das pessoas mais simpáticas e contagiantes que tive o prazer de conhecer. Aliás, ela é a própria personificação da empatia.

Monday, August 11, 2014

Solidão

Nunca se deve a solidão subestimar
O mal necessário que ela tanto é
Tanto quanto uma semente que dá o pé
Quando dos prantos faz-se brotar

A introspecção fácil pode não ser
Mas quem consigo próprio não sabe lidar
Tampouco far-se-á acompanhar
Tendo feridas expostas sem as coser.

Terra do Adeus

Neste burgo tão pesado
As esquinas são lapsos
Memórias quase grafitadas
Palcos de tristes abraços

Quão encharcado é o Agosto
Regado tão a contragosto
Com gotas caídas do céu
Ou escorridas pelo meu rosto

São tantos aqueles que vêm
A esta terra só de passagem
E antes que outros venham também
Deixam marcas e seguem viagem

No saldo destas andanças
Dos que vêm e vão
Tão só sempre fico eu
Na terra do adeus

Mas eu próprio só passo por cá
Já tanto me fui e tanto regressei
E como bom andarilho que sou
Sei que um dia novamente me irei.

Saturday, August 9, 2014

Travessa das Almas

Parte I

Houve certos dias mórbidos
Que pareciam abrir passagem à morte
Dias como lombra sem barato
Como coito sem orgasmo
Como o peso de uma existência que nos fode o juízo
E o silêncio que parece a única melodia audível
Dias que ainda ecoavam o passado
Que marcavam o semblante cansado
Dias deprimentes de eterno presente
De um futuro cada vez mais ausente
Tudo parecia sem rumo
Quando o inverno se alongava
E exalava a esmo a existência solitária
Todo o cinza parecia eterno
E a tristeza era a única dimensão
Havia tempo que eu não brilhava
Dentro de uma constelação
Meus amigos pareciam miragem
Todos emplastros da engrenagem social
Todos ausentes e inconsequentes
Com a virtude em pedaços
Tão aguçados que nos perfuravam
E nos dilaceravam as entranhas
Naquelas noites frias e tacanhas
Acobertadas pelos pretextos
Pelos lamentos escusados
Pelos planos empoeirados
Tudo parecia o fim
O rescaldo de um estopim
Os espólios apodrecidos
Desvalidados e sucumbidos
Tudo parecia ressaca vinda de Praga
De toda aquela debandada
E nada mais que frivolidade
Com elevadas doses de crueldade
Porque eu queria a putaria das ruas
As porra-louquices profícuas
Eu queria ser desafiante e meter nojo
Queria a volúpia, a luxúria e o gozo
E eu só tinha a realidade bruta
A realidade dos cidadãos responsáveis
Das hordas teleguiáveis
E eu me cegava com a claridade do dia útil
Desejando viver apenas no crepúsculo
Mas a noite que é tão matreira
E que nos envolve ainda que sorrateira
E que se incumbe sem parcimônia
De ostentar toda a cachimônia
A noite que é uma porta
E que nos livra de toda a masmorra
A noite que já é adulta
Que exerce o peso e infringe a culpa
Reservou-me os seus cenários
Seus devaneios e seus ensaios
E dela cantaram vozes desafinadas
Mas que a prosa teciam com embalo
E surgiram as viagens
As êxtases urbanas
As drogas mundanas
Substâncias que profanam a vergonha
E fluem os disparos verbais
E fundam cumplicidades etílicas
E unem necessidades iguais
E nos desencontros invernais
Na fuga às querelas sentimentais
Surgiu o espectro das cores setentistas
E piqueniques com cheiro de maresia
E novas tretas com samba e enredo
Nos carnavais banhados em vinho azedo
Nas balbúrdias das repúblicas
E nas ruelas escuras e úmidas
Ou junto ao d'Ouro com as gaivotas
Nas noites frias esquentadas com vodka
E de um grupelho surgido do acaso
Fez-se, sem pacto, muitos novos laços
E uma ideia efervesceu num compasso
E como um imã atraiu toda a gente
De proveniências tão diferentes
E logo foi a invasão de brasileiros
E um turco e alguns portugueses
E italianos e também poloneses
E da Grécia vinha uma artista
Que no samba mostrava a sua pinta
E outra grega em romance com um alemão
Ensinava como todos os povos são irmãos
E todos partilhavam suas casas
E ofereciam belas jantaradas
Mas foram jardins e terrenos baldios
Os refúgios que mais nos uniram
Além das sinceras amizades
E das virtudes que transbordavam
Por cada canto da cidade
Que embora permanecesse cinzenta
Já tinha todas as tonalidades
E o frio já não mais assombrava
Com o calor de abraços afetivos
Com goles cada vez mais excessivos
E cantigas em parques escuros
E nas calçadas de ruas abarrotadas
E saraus em cada canto perdido
Em cada espaço que se achava
Numa cidade que eu tão pouco explorara
E os sabores que cada um trazia de casa
Formou-se uma confraria anárquica
E quando me flagrei já forasteiro
Dado ao Porto como nunca havia feito
Desvendei tudo o que sempre se escondera
E até vi o vislumbre de certa beleza
No rosto jovem de sorrisos sinceros
Nos amigos que nem sei bem de onde vieram
E foi lá, naquela casinha esbelta e raquítica
- e noutras espalhadas pela Invicta -
Que encontrei a minha redenção
E recuperei toda a minha paixão
Para voltar a sentir tesão pela vida
Para suspirar com o sabor de cada investida
E me encantar com as pessoas
Como se já não houvesse mais rancores
Como se cada aurora suprimisse as dores
A casinha que era mais um casebre
O casebre de paredes tão frias
Com calor humano que tanto aquecia
Revestiu-se de pura magia
Mesmo naquela rua sombria
Cheia de gunas e de vícios labregos
Um casebre que emergia da mediocridade
E emergia de quase toda a cidade
A cidade que me pusera um revés
E que então eu subvertia
Com carradas de tanta empatia
O casebre que me abrigou e que eu adotei
O casebre que poderia ter sido outro
Não fosse nele toda a confluência
De amizades e experiências
Não fosse nele toda a alucinogenia
Com charros de haxixe e garrafas vadias
Não fosse ele o antro da libertinagem
Das paixões reais e das meras catarses
Não fosse a casa do Ozan e da Chiara
Não fosse a rua a Travessa das Almas.

Vladimir

Passam transeuntes
E turistas varridos
Passa a brisa
E o olhar dos mendigos
Passam cavalos
E seu ar de martírio
E as gentes esnobes
Que desfilam delírio
As notas ecoam
E invadem ouvidos
Que se fazem ajustados
Os mais providos
Cada sopro é um esforço
Um grito de alívio
Que esbugalha os olhos
E faz tremer os cambitos
Passam os carros
Seus roncos poluídos
Que lhe ofuscam as notas
Mas não lhe tiram o brilho
Passam as modas
A chuva, a neve e o frio
Passa o verão
Esmorece-se o brio
E passam os anos
E renova-se a vista
Mas no coração da cidade
Nunca passa o artista.


Friday, August 8, 2014

Os Passos

Passos são estalos
Compassos quebradiços
Arrítmicas sucessões
De pequenos avanços
À frente ou à tangente
Na cidade que braveja
Passos são suspiros
A solidão que lateja 
Passos são fugas
São precipitações
Passos são palavras
E duros sermões
Passos são melodia
E a busca da paz
Passos podem ser asas
Num percurso assaz
Passos são cambaleio
E também são tropeço
Passos não findam em si
São antes um começo
Passos rompem a noite
São o assobio matutino
Passos são o caminho
Mesmo que não haja destino.

A Preguiça

As paredes frias, amareladas
Sujas, rabiscadas e decoradas
Cansadas de tantas resmungadas
Saudades em retratos e papéis ilustrados
As novas ideias já desbotadas
As obras mortas, emparedadas
Os montes de virtude inutilizada
Restos de comida carcomida
Os trapos fedidos com que eu me visto
Espalhados e amassados
Tresandam a perfumes amaldiçoados
Livros desonrados e abandonados
Poesia mofada, sem rima e cadência
O cheiro da inércia e da indiferença
O talento disperso e desperdiçado
Os planos ousados, todos mitigados
A janela que sopra o vento da madrugada
Que traz arrepios e calafrios
E me convida à vida que eu olho de soslaio
E abre a porta por onde eu não saio.

Monday, August 4, 2014

Sonetto Strambotto del Mitico

E meio assim, como se fosses um mito
Das filosofias mundanas e cáusticas
Das paixões insanas e das fugas drásticas
Eu falo de ti; a tua lembrança eu fito

Estás na roda de samba e na poesia vadia
Na gentileza inocente e na partilha da erva
Nos longos abraços e na volta a casa
Nas canções delirantes, nas noites de magia

Eu vou rumando até te reencontrar
Nas sortes do acaso ou numa nova investida
Não sei aonde; em qualquer lugar

Por mais que falhem os sentidos, és real nesta vida
O que te faz ser um mito é todo esse teu ar
De quem não suporta a leveza desmedida

E onde quer que o caminho que segues sozinho vá dar
Vou de boleia contigo à Finisterra perdida
Até que a redenção surja na paz que é o teu único lar.


Nota: dedicado ao meu amigo italiano, de Bréscia, Stefano.

Azeitonas Filosóficas

Azeitona filosófica
tiragosto esmiuçante
em prosa metódica
da realidade intrigante
Coelho lunar
padroeiro das causas etílicas
da boêmia embriaguez
da mais ébria lucidez.


Nota: Na Ribeira, ali confinada entre restaurantes e bares turísticos, há uma vendinha chamada Azeitoneira do Porto. Sorte têm aqueles que podem passar uma tarde degustando variados tipos de azeitona às margens do D'Ouro, bebendo vinho barato e tecendo quimeras filosóficas. Sorte tive eu. Eu e o meu amigo Otávio Moraes. 

Sunday, August 3, 2014

Soneto Lunar

Quando a prata cintilante rasga a penumbra
E suas manchas silhuetam o coelho selênico
- padroeiro supremo das causas etílicas -
O ritual, cá embaixo, na cachola reslumbra

Na Baixa ou na Alta, na Ribeira ou no beco
Estilhaçamos palavras em rajada e bravata
Orações seculares em goles secos permutam
Vagueamos em prosa, um mineiro e um tcheco

Consumimos ruelas e defloramos garrafas
Deixamos um rasto de poesia revoltada
E afogamos no álcool as vigências amorfas

Esmiuçamos quimeras da esfera que translada
E que gira sob os auspícios da nossa embriaguez
E depravamos olivas com dissimulada lucidez.


Nota: poema dedicado ao meu amigo poeta e pensador Otávio Moraes e às nossas aventuras etílicas, libertinas e filosóficas. Obrigado pela companhia, pela inspiração e por me fazer voltar a escrever poesia.

Isabel (Catarse Portuense)

Pelas artérias escuras
Ou numa ruela pálida
Sobre o asfalto frígido
Foges da noite ávida

Transgrides a lucidez
Beijas o alcatrão húmido
Desdenhas da sensatez
Vingas-te do olvido

Desafias altitudes
Entranhas-te pelas Virtudes
Pelos jardins que choram
As tuas vicissitudes

Pela urbe que pernoita
Fazes-me sequaz
Da purgação que te açoita
Dos pecados que te dão paz

Entorpeces esquinas
E avanças veredas
E das muralhas fernandinas
Expeles labaredas

A tua silhueta insegura
O equilíbrio à prova
No trapézio onde os loucos
Recitam-te em verso e prosa

A cara, a coroa
O vinho, a cruz
O passeio, a garoa
O calvário, a luz
As lágrimas salgadas
As curvas delgadas
As madeixas douradas
As roupas molhadas
Beijos na sarjeta
A cidade à espreita
A percepção rarefeita
A rua de Cedofeita
A Travessa das Almas
O recanto dos corpos
Uma noite inóspita
Que dispensa remorsos
O dilúvio que finda
Traz a calmaria
Ao atalho onde seguem
A tua sina e a minha.


Nota: dedicado a Joana Isabel, uma moça portuense.

Sunday, July 20, 2014

La Milanese

No teu entorno perdido
Dado sempre aos enganos
Mas desvendei-te, por fim
Nos desatinos mundanos

Sem querer ou mesmo querendo
Foi só uma questão de tempo
Até ver-me de ti peregrino
Nos meandros do teu destino

Eu juro pelos nossos abraços
Pelas noites nos teus braços abrigado
E por todo o vinho degustado
Pelos cartões postais enviados
E pelas sessões de cinema
Pelas nossas gargalhadas
E todas as jantaradas
E também pelas brigas travadas
E até pelas minhas fobias
- que não merecem mais que ironia -
Que a tua hospitalidade
Na minha própria cidade
Desacinzentou-me o céu
Descomprimiu o meu léu
Redecorou-me os lampejos
Regenerou-me os ensejos

Fiz zona de conforto
Na órbita da tua existência
O medo zelado de ti
Não era mais do que reverência

O teu humor rabugento
E a minha introversão
Elos tão fortes criados
Nossa estranha comunhão

A tua presença sutil
A tensão no teu feitio
A aspereza das tuas palavras
Tom sisudo mas sempre gentil
A rudez travestida em gestos
E teus trapos vadios e surrados
A estridência de um olhar
Que me guardava empedrado

De todas as nossas partilhas
- garrafas e confrarias -
A minha maior alegria
Foi ter-te em sintonia
Para edificarmos
Com a força da cumplicidade
A égide e o sustentáculo
Do palácio da amizade.


Nota: poema dedicado à minha amiga italiana Chiara Grilli, a Chiarinji.

Thursday, June 5, 2014

Os Artífices

A epopeia da martirização
O vício dos prazeres mórbidos
dos corações mutilados
O espetáculo agonizante dos autoflagelados
Dos que não dormem com medo de sonhar
Dos que não acordam com medo de viver
Dos semblantes embrutecidos pelo desgaste
Pela fraqueza e pela convenção
Pelo disparate das ondas eletromagnéticas
O cataclismo da individualidade
A negação do não
O sim teleguiado
A arrogância dos desesperados
A monstruosidade das marionetas
A complacência dos que se iluminam
de quem tem luz própria
A miséria da ostentação
A imoralidade dos moralistas
O pudor despudorado
Desinfetado, higienizado
Desumanizado
O banquete da desvirtude no altar da normalidade
A luxúria dos oportunistas
Dos asseclas bem integrados
O clímax da procrastinação
O ódio desperdiçado e o amor em distração
As ideias abortadas
E o medo cultivado
O cativeiro da coragem
O poema não rabiscado

Que, pela vida, eu não me ausente
Que dela eu seja consequente
Que, pela vida, eu não me ausente
Que nela eu viva sempre o presente

Sunday, June 1, 2014

Para Sempre Perdido

Não estou perdido
Só desencontrado
Procurar-me é a sina
É tudo o que eu faço
A manhã suave
Que acorda comigo
Ilumina o caminho
Por onde eu sigo
O rescaldo da noite
O alvorar do sentido
Desabrigado da alma
Sou quase um sem-abrigo
Não estou perdido
Só desencontrado
Nesta busca constante
Não quero ser compensado
Eu me fiz nesta vida
Onde o incerto é lei
Na viagem perdida
Eu me reencontrei
Quanto mais me procuro
Mais eu fico perdido
Pela estrada que avanço
Ficam os meus vestígios

Tuesday, May 27, 2014

A Amante

É claro que eu continuo irremediavelmente apaixonado 
Unicamente pela cidade mais bela, mágica, poética, 
Musical, encantadora, romântica, 
Libertina, misteriosa, fotogênica, 
Amaldiçoada, pecaminosa, visceral, 
Embriagante e inspiradora. 
É a ela que eu pertenço 
- por direito, por vício e por cumplicidade - 
E não a alguma mulher de alguma aventura carnal. 
Muitas garras podem arranhar as minhas costas 
Na expressão da libido,
Mas só as garras da Senhora do Leste,
Da Dama das Cem Torres, 
É que arranham o meu coração diariamente
Com toda a crueldade de uma amante sedenta. 
Do tesouro ela é o baluarte. 
É mais que o todo
E que a soma das partes.

Erasmus

Somos sempre tão jovens
Ou talvez nem tanto
Somos o mundo inteiro
Somos um só recanto
Somos todas as cores
E todas as línguas
Somos sabores e odores
De terras longínquas
Somos a confusão
A música e o vinho
Somos um só coração
E um mesmo caminho
Somos a aspiração
Da alma espairecida
Estudantes de novas lições
No curso da vida

Somos o frio da saudade
Da nossa gente e chão
Mas na nossa nova casa
Somos todos irmãos

E regressamos à terra
Com malas de corações
E a dor que fica no nosso
Disperso em mil porções

Somos uma utopia
Vivida a cada dia
De meses sempre tão curtos
Para tanta magia
Somos cada exagero
A ressaca e a catarse
Somos a paixão dos amantes
Quando transborda a amizade
Somos a cumplicidade
Em cada esquina
Somos da afinidade
Uma mera rotina
Somos o tom da expressão
Que colore a cidade
Somos a celebração
Da multiculturalidade

Thursday, May 22, 2014

Repúdio à Não Vida

Parte I

Aos que se movem por passos
sem caminhar de fato,
sem rumar pelos destinos da vida,
sem invadir as lacunas do mundo.
Aos procrastinadores do atarefamento,
atolados no estrume citadino
e nas funções de funcionários funcionais,
os velocistas das jornadas laborais,
confinados em caixotes móveis
que entorpecem a cidade com seu negrume gasoso.
Aos escravos da morbidez televisiva,
com vistas limitadas a um ângulo de sessenta graus.
Aos atinados modernos,
seres perdidos no mundo,
desencontrados de si mesmos.
Desatolem-se antes de serem enterrados
nesse estado de morte viva
dentro do próprio buraco
que a gravidade cavou no chão
com o peso da vossa consciência.
Caminhem contra o tempo
que vos consome feito fogo
e que esculpe em vosso semblante
a sua pressa implacável.
Fujam da loucura da normalidade,
da obediência às convenções,
da censura aos próprios sonhos.
Acordem e sonhem a realidade proibida
pela vertigem vertiginosa do acumulo do vazio,
pelo totalitarismo das ocupações inúteis
da engrenagem social.
Não há funeral mais desolador
do que a morte da vontade
e o estupro do impulso.
Não há vida mais valiosa
do que a morte por excesso de ousadia
e por excesso de negação prática
da própria morte moribunda.

Parte II

Morram,
mas morram empanturrados de vivência,
morram embriagados pela emoção,
morram esquartejados pela adrenalina,
decapitados pelo coração,
esfaqueados pela felicidade,
metralhados pelos abraços das amizades
e sufocados pelos beijos dos amores.
O privilégio da existência
é só dos que carregam
a refrescante exaustão da vida plena;
os demais, que vivem mortos,
só esperam que a carcaça seja enterrada,
por mais alucinados que aparentem
correndo em busca das doses diárias de nada.

Parte III

O pior sem-abrigo
é o que se desabriga da responsabilidade
de ser irresponsável.
O pior faminto
é o esfomeado de carnalidade,
o obsceno do pudor castrador,
o que não lava a alma
na chuva inconveniente
de uma noite depravada.
A tacanhice mais provinciana
é a dos urbanos
que desprezam o cheiro
da terra molhada
e o brilho do orvalho.
Não há maior covardia
do que a coragem de ocupar uma zona de conforto
que não passa de uma gaveta de concreto
onde cada suspiro é arquivado para sempre,
e cada desejo é compelido
em nome de um orgulho putrefato
que corrói feito câncer cada célula de dignidade.
Não há maior delírio religioso
do que a crença na própria perfeição,
e não há nada mais fútil
do que a inveja mórbida
da vida de quem não se suporta.