Seu rosto ferrugento,
meu verbo rabugento,
seu polvo tatuado,
e eu ali, ilhado.
Sua visita madrugueira,
minha timidez corriqueira,
seu fogo, sua sanha,
e eu frouxo sem a manha.
Sua verve assertiva,
minha esquiva disjuntiva,
sua norma expedida,
minha entrega presumida.
Sua paixão que não se mede,
minha fuga a São Mamede,
seu ônibus 600,
após três já não aguento!
Nossa treta assumida,
altar na Rua Ermida,
nossos fartos comensais
e nossas fomes carnais.
Seu all star imundo
e eu rendido vagabundo,
sua habitual perseverança,
minha módica temperança.
Seus medos, seus ciúmes
e eu eivado de deslumbres,
o trabalho, a aula, a hora,
a madrugada a tudo devora.
Seu capacetinho asseado,
meu dread desleixado,
nossas sessões de cinema
e nosso ritmo ao som de Enya.
Sua coleção de remédios
e eu definho sem promédios,
seu comprometimento,
minha fuga, meu tormento.
A justiça que lhe é cara,
sou réu que não se mascara.
O meio fio do Carnaval,
seu tornozelo de metal.
E no meu quarto lhe encaixar?
não há espaço, mas há chá,
chá de chatoline,
ou um beck: e durma firme!
Os festivais são traiçoeiros,
trazem prenúncios sorrateiros:
amor dentro de si cresce
e em mim ele estremece.
Seus planos de futuro
metem medo no imaturo:
e quando você quer voar,
parece que me falta o ar.
Você acusa a minha ausência
e eu sufoco sem latência,
sua raiva é só tristeza
e eu me cego na frieza.
Você sangra, você chora,
eu fossilizo cada hora,
e tudo o que lhe engrandece
tão pequeno a mim parece.
Mas na luta que você deu
quem saiu pequeno fui eu,
e veio mais um Carnaval,
e o tornozelo já não era o mal:
impávida ruiva galharda,
dignificante e derrotada.
Mas sou eu quem naufraga:
mar de trauma que embriaga.
Sandoval testemunhou,
Mafalda confirmou,
e então o corona se impôs
à nossa tragédia a dois.
Já sem o 600, São Mamede e Ermida,
cresceu-me escondida a ferida,
e a página você virou,
e eu fui hospedando o bolor.
Você prosseguiu e vingou,
minha ferida um gatilho furou.
Você agora vive outros versos,
e eu vivo imerso em remorsos.
Que a dor por lhe ter perdido
seja a lição que terei aprendido:
o amor é para quem tem coragem
por mais que se tenha bagagem;
Que a culpa por lhe ter magoado
me cobre preço bem cobrado:
me ensine que amor sem rodeios
rompe medos e bloqueios.
E se agora eu pudesse voltar,
na nossa história, a um só lugar,
a deixaria intacta todinha
e voltava era ao fim da linha,
e seria ao entroncamento,
àquele infeliz momento
em que você matava a charada
e eu ia na pista errada.
Ia então me redimir
do maior erro que cometi:
eu tornei bússola a depressão
mas só seu sorriso era a razão.
Só para rumar-me, então,
no rumo certo: sua direção.
Por isso lhe peço perdão
dos pedacinhos do meu coração.
Você só me pedia amor,
ele entalado em mim ficou,
e agora explodo qual vulcão,
sofro ardendo sem sua paixão.
Nesta vida, a arte de errar
é como escrever ou fotografar,
mas como pude falhar
quando era tão fácil acertar?
E para desembolorar,
e situar o nosso exemplar:
foi a saga de dois amantes
culpados e diletantes.
Sua rubra vontade incontida
e minha preguiça assentida,
no fundo, bem lá no fundo,
era amor puro e profundo.
Um amor meio adolescente,
incerto mas bem consequente,
mistura de beijos e lamentos,
paixão, raiva, mimo e xingamentos,
Pizza, risotto e, claro, salada,
vegassant na manhã ensolarada.
Sushi, sorvete, burger edificante,
na cama o menu era mais picante.
Viagens, clausuras e lombras,
pelejas na chuva e nas sombras.
Parceria em longas caminhadas
e o caminho das nossas jornadas.
Confrarias de tanta amizade,
utopias que foram quase verdade.
Nesse caldo de alteridade
cozemos nossa cumplicidade.
E eu sei que muito faltou,
minha entrega não se consumou,
mas fomos um tanto felizes
por mais que neguem as cicatrizes.
Chucrute, sardenta, Fofão,
eu lembro com tanta emoção:
seu rosto quando sorria,
o tanto que me comovia!
Por fim, só quero dizer
que estou muito grato a você:
bela e torta história da vida
foi o romance da Rua Ermida.
(Este não é um poema como os outros, que se baseiam em fantasias, desejos e sonhos. Este poema, que é um repente nordestino, fala sobre uma experiência de vida, sobre fatos, sobre a realidade de uma relação com uma sulista, a quem ele é dedicado como forma de pedir perdão e como declaração do mais puro amor. Ele conta a minha história com essa mocinha sardenta e decidida, que entrou na minha vida de maneira inusitada e nela permaneceu por ano e meio, transformando-me por dentro e por fora. Foi turbulento, mas vivemos momentos felizes e divertidos, cheios de paixão, cumplicidade e superação. Depois, foi embora - culpa minha, que errei e me deixei deprimir no momento em que estava prestes a abrir mão do conforto do meu mundo por amor a ela, um amor acanhado que latejava por explodir. Foi embora mas ficou. Ah, como ficou. A presença da sua ausência é a minha penitência. Mereço-a, mas cabe-me redenção. Minha utopia pessoal é que um dia ela volte para usufruir da obra que deixou, que sei que também a mudou. Gostaria que ela hoje e sempre lembrasse de mim com o carinho incondicional que lhe tenho. E aquele sorriso de cabeça erguida e boca e olhos semi-cerrados...um dia inventarei uma palavra que explique tal fenômeno sublime da natureza. A arte serve também para resgatarmos e restaurarmos memórias que as feridas porventura rasuraram)