Monday, September 27, 2021

O Romance da Rua Ermida (repente do arrependido)


Seu rosto ferrugento,

meu verbo rabugento,

seu polvo tatuado,

e eu ali, ilhado.


Sua visita madrugueira,

minha timidez corriqueira,

seu fogo, sua sanha,

e eu frouxo sem a manha.


Sua verve assertiva,

minha esquiva disjuntiva,

sua norma expedida,

minha entrega presumida.


Sua paixão que não se mede,

minha fuga a São Mamede,

seu ônibus 600,

após três já não aguento!


Nossa treta assumida,

altar na Rua Ermida,

nossos fartos comensais

e nossas fomes carnais.


Seu all star imundo

e eu rendido vagabundo,

sua habitual perseverança,

minha módica temperança.


Seus medos, seus ciúmes

e eu eivado de deslumbres,

o trabalho, a aula, a hora,

a madrugada a tudo devora.


Seu capacetinho asseado,

meu dread desleixado,

nossas sessões de cinema

e nosso ritmo ao som de Enya.


Sua coleção de remédios

e eu definho sem promédios,

seu comprometimento,

minha fuga, meu tormento.


A justiça que lhe é cara,

sou réu que não se mascara.

O meio fio do Carnaval,

seu tornozelo de metal.


E no meu quarto lhe encaixar?

não há espaço, mas há chá,

chá de chatoline,

ou um beck: e durma firme! 


Os festivais são traiçoeiros,

trazem prenúncios sorrateiros:

amor dentro de si cresce

e em mim ele estremece.


Seus planos de futuro

metem medo no imaturo:

e quando você quer voar,

parece que me falta o ar.


Você acusa a minha ausência

e eu sufoco sem latência,

sua raiva é só tristeza

e eu me cego na frieza.


Você sangra, você chora,

eu fossilizo cada hora,

e tudo o que lhe engrandece

tão pequeno a mim parece.


Mas na luta que você deu

quem saiu pequeno fui eu,

e veio mais um Carnaval,

e o tornozelo já não era o mal:


impávida ruiva galharda,

dignificante e derrotada.

Mas sou eu quem naufraga:

mar de trauma que embriaga.


Sandoval testemunhou,

Mafalda confirmou,

e então o corona se impôs

à nossa tragédia a dois.


Já sem o 600, São Mamede e Ermida,

cresceu-me escondida a ferida,

e a página você virou,

e eu fui hospedando o bolor.


Você prosseguiu e vingou,

minha ferida um gatilho furou.

Você agora vive outros versos,

e eu vivo imerso em remorsos.


Que a dor por lhe ter perdido

seja a lição que terei aprendido:

o amor é para quem tem coragem

por mais que se tenha bagagem;


Que a culpa por lhe ter magoado

me cobre preço bem cobrado:

me ensine que amor sem rodeios

rompe medos e bloqueios.


E se agora eu pudesse voltar,

na nossa história, a um só lugar,

a deixaria intacta todinha

e voltava era ao fim da linha,


e seria ao entroncamento,

àquele infeliz momento

em que você matava a charada

e eu ia na pista errada.


Ia então me redimir

do maior erro que cometi:

eu tornei bússola a depressão

mas só seu sorriso era a razão. 


Só para rumar-me, então,

no rumo certo: sua direção.

Por isso lhe peço perdão

dos pedacinhos do meu coração.


Você só me pedia amor,

ele entalado em mim ficou,

e agora explodo qual vulcão,

sofro ardendo sem sua paixão.


Nesta vida, a arte de errar

é como escrever ou fotografar,

mas como pude falhar

quando era tão fácil acertar?


E para desembolorar,

e situar o nosso exemplar:

foi a saga de dois amantes

culpados e diletantes.


Sua rubra vontade incontida

e minha preguiça assentida,

no fundo, bem lá no fundo,

era amor puro e profundo.


Um amor meio adolescente,

incerto mas bem consequente,

mistura de beijos e lamentos,

paixão, raiva, mimo e xingamentos,


Pizza, risotto e, claro, salada,

vegassant na manhã ensolarada. 

Sushi, sorvete, burger edificante,

na cama o menu era mais picante.


Viagens, clausuras e lombras,

pelejas na chuva e nas sombras.

Parceria em longas caminhadas 

e o caminho das nossas jornadas.


Confrarias de tanta amizade,

utopias que foram quase verdade.

Nesse caldo de alteridade

cozemos nossa cumplicidade.


E eu sei que muito faltou,

minha entrega não se consumou,

mas fomos um tanto felizes

por mais que neguem as cicatrizes.


Chucrute, sardenta, Fofão,

eu lembro com tanta emoção:

seu rosto quando sorria,

o tanto que me comovia!


Por fim, só quero dizer

que estou muito grato a você:

bela e torta história da vida

foi o romance da Rua Ermida.


(Este não é um poema como os outros, que se baseiam em fantasias, desejos e sonhos. Este poema, que é um repente nordestino, fala sobre uma experiência de vida, sobre fatos, sobre a realidade de uma relação com uma sulista, a quem ele é dedicado como forma de pedir perdão e como declaração do mais puro amor. Ele conta a minha história com essa mocinha sardenta e decidida, que entrou na minha vida de maneira inusitada e nela permaneceu por ano e meio, transformando-me por dentro e por fora. Foi turbulento, mas vivemos momentos felizes e divertidos, cheios de paixão, cumplicidade e superação. Depois, foi embora - culpa minha, que errei e me deixei deprimir no momento em que estava prestes a abrir mão do conforto do meu mundo por amor a ela, um amor acanhado que latejava por explodir. Foi embora mas ficou. Ah, como ficou. A presença da sua ausência é a minha penitência. Mereço-a, mas cabe-me redenção. Minha utopia pessoal é que um dia ela volte para usufruir da obra que deixou, que sei que também a mudou. Gostaria que ela hoje e sempre lembrasse de mim com o carinho incondicional que lhe tenho. E aquele sorriso de cabeça erguida e boca e olhos semi-cerrados...um dia inventarei uma palavra que explique tal fenômeno sublime da natureza. A arte serve também para resgatarmos e restaurarmos memórias que as feridas porventura rasuraram)