Saturday, December 6, 2014

A Via Láctea

O que importa o escuro à tua volta
Quando o teu brilho cintila?
És como uma estrela
Que lampeja na vastidão negra do espaço.
E, como ela, és apenas mais uma
Dentre a infinidade que te rodeia;
És apenas um pontinho luminoso
Que vive para radiar.

Sim, és apenas mais uma,
Mas, como todas as estrelas,
Tens luz própria
Para iluminar-te a ti
E a quem habita a tua órbita.
E quem tem luz própria,
Por menor e mais insignificante que pareça,
Tem a liberdade da autoafirmação,
E, ao contrário desses enormes planetas sombrios,
Não depende do heliocentrismo alheio.

Mas,
Mesmo sendo apenas mais uma,
O teu brilho interiorizado
Te revela o astro raro que és,
Porque não há nenhum outro igual a ti
Em meio a toda esta poeira cósmica.
Nem a outra estrela
Surgida no Big Bang da tua progenitora!
Pois então mais que o teu brilho natural
Eu celebro a tua singularidade,
Porque és única
E a Mãe Natureza nunca modelara
E nunca voltará a modelar
Alguém como tu.

És uma estrela,
Mas deambulas pelo meu universo
Como um cometa
Que passa e rabisca luz.
E é esta luz, fina e afiada,
Que rasga o peito
Deste astrônomo que te observa
Cá de baixo,
Deste telescópio enferrujado,
Cuja função é te ajustar
Ao tamanho do teu esplendor.

Tuesday, October 21, 2014

Ode Erótica

No improviso deste foragido ninho
No cativeiro da nossa cumplicidade,
No ritmo da música minimalista
Da orquestra das ondas
Que se insinuam sob o horizonte
E nos atiçam
Como a vinhaça vadia
Que rubra o nobre cristal,
Despidos dos devaneios citadinos
E das precauções convencionais;
Dançantes também são os nossos corpos simbióticos
Que se procuram e se encontram
E encerram o suspense da nossa covardia.
Entorpeço-me de ti!
Mordo-te e abocanho-te
E desvendo os teus becos úmidos efervescidos
Enquanto o teu gemido
Rasga como um solo de guitarra
O marasmo rítmico do mar tempestuoso
Que nos braveja a luxúria.
Sobre a cama que se debate contra a parede
Celebramos mais do que a polivalência fisiológica;
Celebramos a nossa ardente amizade sem limites,
Desamarrada e enlouquecida.
As tuas unhas felinas raivosas
Rabiscam poesia na minha pele sardenta,
E a dor que eu sinto é o ápice
Da vontade incontida de nos sentirmos
E partilharmos as sensações
Despoletadas pelos nossos olhares embriagados
E pelo toque quente dos nossos dedos suados
E dos beijos que norteiam nossos rostos
Ao encontro um do outro
E desfocam tudo ao redor
E desnorteiam o juízo procrastinador.
O teu gemido é música!
O meu suor é afluente do rio que escorre
Pela geografia do teu corpo pálido:
Território proibido que eu avanço
Em nome da rebeldia dos amantes impuros;
Em nome da tua incontrolável vontade
De cometer erros tão necessários;
Em nome da chama que emerge da tua voz
E me consome a temperança
E me acende o apetite de devorar-te
Desvairadamente
No altar das nossas preces seculares
Que afirmam os corpos
E libertam as mentes.
E na noite das ondas dançantes,
No lusco-fusco do abajur avermelhado,
Eu exploro-te os relevos insinuantes,
As tuas planícies delgadas
E as tuas matas rasteiras vulcânicas,
Tal qual Humboldt.
És a minha América!
Desvendar os teus fenômenos
É o que me move e me atrai
Aos teus terrenos envenenados
E movediços nos quais me afundo.
E afogo-me na fluidez que te provoco
Com meus toques,
Ora gentis, ora ásperos.
A loucura que paira no ar viciante
Dos nossos odores libidinosos
E repousa nas roupas violentadas
E atiradas ao abandono
É o que mais me vicia em ti;
É a fúria carnal
Que goteja em cada curva tua
E sacia a minha sede.
O que diria Kundera,
Ali abandonado
À leveza do chão frio que nos sustenta,
Da magia profana
Do vaivém dos nossos corpos fundidos?
O que dirá o silêncio constrangedor
Do amanhã rastejante
Entre a ressaca hipnótica
E o arrependimento efêmero
Que logo será fogo novamente
E queimará mais uma vez a razão inútil
Em nome da celebração
Da nossa amizade precipitante?
Bebemos doses brutas do fel
Da conivência aventureira
Que explora os cantos polidos
Onde se escondem as nossas quimeras,
E a noite vindoura já anunciada
No acumulo desses olhares comprometidos
Acolherá como se fosse a primeira vez
A dança dos nossos corpos
No ritmo galopante e anárquico
Entoado em gemidos rasgados.
Eu te quero no teu cheiro congelante
E na tua boca que me morde
E me desfia o juízo.
Eu te quero na nudez da tua entrega,
Nas tuas nádegas sóbrias esculpidas
Como o traçado elegante
De um pintor renascentista.
Eu te quero no olhar que se perde no êxtase,
Nas nossas lambidelas suculentas
E na desesperante busca da insanidade.
Eu te quero nas palavras sujas,
Nos fluídos e nos sabores amargos,
Para tragar-te no nosso altar escaldante
Adornado por lençóis corrompidos
E por vestes retorcidas
E livros subvertidos
E cabelos arrancados
E peles rabiscadas
E gemidos roubados
E o tempo paralisado
Num beijo sufocante
E na estocada final
Como o aceno de um maestro
Que recolhe aplausos
De uma plateia onírica,
E por fim
Colo-me a ti
Exausto e desfeito em suor
Para suspirar o dever cumprido
De despurificar a pretensa santidade
E de dar a este mundo
Mais uma dose de mácula.

Tuesday, October 7, 2014

Que Força É Esta?

Que força é esta
Que vem sem ser chamada,
Que some feito fogo de palha
Ou fica na vida encravada?

Que força é esta
Que pleita peito e invade sono,
Que segue passos na sombra fria
E espreita sem dar descanso?

Que força é esta
Que priva da calmaria,
Que entorpece e vicia o tempo
E paira na cantoria?

Que força é esta
Que traz inverno rigoroso
E invade todas as janelas
Da casa a que chamamos corpo?

Que força é esta
Que suprime a temperança
E renova a maldição
De velhas esperanças?

Que força é esta
Que nos teus trejeitos dança,
Que pelos teus olhos chega
E se torna minha sustança?

Thursday, October 2, 2014

A Maldição

Pergunta ofegante
Ao poeta o diletante:

- O que é o amor?

Responde o poeta
Em lírico ardor:

- Amor é a expressão maldita
De uma intransigência da vida.

Thursday, September 11, 2014

Entre Rio e Mar

Livres do ruído
E das luzes da cidade,
Das confusões,
Das impermeabilidades.
Nossos pés desbravantes
Merecem a suavidade
Da fria areia,
Porque esta noite
É A Noite!
Não é mais uma distração;
Não é algazarra sem razão.
Isto é a eternidade
Passando pelos nossos olhos,
Queimando na fogueira
Junto aos granitos aflorados
E caprichosamente ilhados.
Esta é a noite
Pela qual esperávamos;
É o último andar
De uma construção sem fim.
Porque o tempo que corre
E não perdoa
Fará cinzas disto tudo
Quando acabar a lenha
Mas não passar o fumo
Enclausurado
Nas nossas mentes inconsoladas.
E esta noite,
Que dia começou
E dia acabará,
É a chegada de uma corrida ao contrário
No avesso mundo nosso,
Encaixada neste paleovale wurmiano
- válvula que regula rio e mar.
Amansam as ondas
Nossos corpos nus,
Porque inúteis são as vestes
E quaisquer superficialidades
Que não a nossa própria pele
Salgada e coberta
Pelo manto arenoso que se agarra
Nos nossos reboliços
Encalhados nesta margem
Irregular e flutuante
Da praia
E da lucidez.
Porque esta não é uma água qualquer;
É a água desta noite,
Que não é uma noite qualquer;
É a noite das noites,
Que também não foram noites quaisquer;
Foram as nossas noites!
Que tanto devoramos
Porque nos aventuramos
E desafiamos
E fugimos da frivolidade,
Das ofertas de bagatela,
Dos lugares-comuns.
Porque a aventura de viver
É medida por estes momentos
Singelos e colossais.
E descomunais!
Tanto que ali,
Depois da próxima curva do relógio
- Que eu já consigo ver
Por tão bem da nostalgia saber -,
Espremerão o peito
E derramarão lágrimas
No simples gesto de recordar,
E querer voltar,
E realizar
Cada ideia louca,
Cada lapso alucinante
E os impulsos delirantes.
Esta é a noite de todas as razões
Emergidas no desejo
De descascar-se de casulos.
E enquanto o fogo queima os espólios da praia
Como se dançasse as nossas cantigas,
Nós acalmamos as ondas frias
Com nossos corpos quentes desroupados,
Porque tão bem eu não te conheço
Para evitar esta cumplicidade
Tão libertina
Como a ousadia
Que se eleva no suspense
E nas insinuações apimentadas,
E tão inocente
Como o teu quer-mas-não-quer,
Como a tua voz exclamada
Ao mirar-me ao natural
Enquanto eu te dispo;
De roupas!
E de embaraço!
E de amarras!
E bailamos sobre o manto silícico,
Porque esta é a noite
Das perenes pegadas
Que o vaivém das ondas
Não desfaz nem apaga
E que o martelo do tempo
Na parede da nossa memória
Martela e crava.

Wednesday, September 10, 2014

A Cave Encantada

No vale dos rabelos,
Nas fundações caprichosas,
Paira-nos a derrocada
De irregulares encostas.

Sob nuvens viageiras
Que aveludam o céu
Na cidade distraída
Por ecrãs verdes ao léu.

Pelas vidraças destroçadas
Eis o quase talvegue
De brilhos tão radiantes
Mas hábitos alienantes.

E no escuro velho galpão,
Protetor da história
- Enólogo guardião
Que engarrafa a memória -,

Não só velas fazem luz
Nas festivas comunhões,
Há também a que produz
A áurea dos próprios foliões;

Libertadores de recantos
Esquecidos pelo mundo;
Condenados aos desencantos
Que deles fazem casas de chuto.

Mas nas poucas eternas horas
A música desencaixota
E o vinho desengarrafa
E em vida fica a cave envolta.

E quando numa ébria noite
A nostalgia latejar
E eu não mais sentir a música,
E a luz da ponte se apagar,

Ocuparei a margem norte
Do célebre manancial
E sorrirei a mais um lote
De onde emanou a Bella Ciao.

Wednesday, September 3, 2014

Flor Morta

É inócuo tudo o que é dito perante a empatia.
São palavras ocas que desfiam;
São vazias.
Elas podem aquecer
Apenas como a fogueira que finda na brasa
Por não resistir ao sopro rigoroso
Do inverno da alma.
Esquece as palavras!
Olha-te quem és nem que seja pelos meus olhos.
Não preciso chamar simpatia
Ao sorriso que em ti brilha;
Nem humildade
À forma como à própria escalada reages;
Nem loucura aos teus ímpetos
Que são tão desesperadamente meus
Que nem imaginas, nem imaginas...
E a cada nova porta que abres
Não preciso chamar curiosidade;
No mel da tua doçura não preciso lambuzar-me
Para provar o conforto da tua simplicidade.
Não preciso aprender outras línguas
Para chamar-te cosmopolita.
Nenhuma palavra te descodifica,
Porque está tudo gravurado na tua essência,
Sem que seja preciso um espelho
Para mostrar-te a tua beleza.
Não preciso atiçar-te no apagar das luzes
Para sentir a tua paixão
Em ebulição:
O clamor pela vida que te rubra.
Faço-o pela vontade egoísta de contagiar-me
E entorpecer-me de ti.
Não preciso ser maquiavélico para chamar-te inocente:
Inocência num mundo de culpados
É o estandarte da coragem.
Mas não são virtudes as palavras elogiosas
Na rima dos versos ou na cadência das prosas
Se eu não as assumo minhas
Para que possas olhar-me nos olhos
E, simplesmente, proteger o silêncio.
É como uma flor morta,
Que ainda assim transborda vida
E diz mais do que mil palavras escritas.

Friday, August 29, 2014

A Dança

Noite, espectro tenso.
Palco do desprendimento;
A testemunha da vida que geme
No porão do medo.
Lembras-te de quando saltitávamos
Na via dos soterrados
E libertávamos paredes?
Dançávamos
Porque não podiam dançar
Todas aquelas árvores processadas
Em poluição visual.
Dançávamos
A dança do silêncio
Dos quarteirões leiloados
Da história abandonada
Ruindo por todos os lados,
Bloco a bloco,
Sobre vultos trafegantes
E claudicantes,
Seus diletantes.
Dançávamos
O silêncio labrego
Dos filhos do provincianismo;
Éramos ridículos
Porque eles não ouviam a música,
Tampouco o grito.
Dançávamos o corpo
Para contrariar a rigidez das casas-torres.
Contorcíamos a mente
Para iluminar os bastidores.
O maior terror de uma cidade fantasma
É o calvário voluntário
Dos seus espíritos implodidos
Reduzidos a nada.

Sunday, August 17, 2014

Brandos Costumes

Às vezes;
Todas as vezes.
Encaro-vos
E pergunto-me
Como se vos perguntasse
Se não vos importais.
Se, de fato, não vos importais.
Pergunto-me,
Fitando-vos,
Como podeis ser tão pacientes
E como podeis ser tão inconsequentes.
Pergunto-me
Onde está o brio dos jovens
E a juventude dos velhos.
Pergunto-me
Se há sangue a correr-vos nas veias.
Todos os dias
São dias de olhar para vós
E perguntar-me
Se ainda sabeis
O que a dignidade significa,
Ou se alguma vez o soubestes.
Quando pareceis, todos,
Membros de uma seita geriátrica terminal
Fanática pelos brandos costumes,
Arraigada no conforto do vitimismo
Como raízes que apodrecem
Em terra pútrida
E não arredam pé.
As ruas estão hibernadas
E esbranquiçadas,
Abrem caminho à tempestade
De toda a poeira que já não cabe
Debaixo dos tapetes.
E as folhas
Das poucas árvores restantes
Se recusam a dançar
A dança da concertação.
A relva vadia
Engole os jardins silenciados
No mesmo ritmo dos tentáculos
Que trepam as colunas dos palácios,
Luxuriam-se nos corredores da promiscuidade
E abocanham os altares.
E, cá fora,
os aglomerados não dissecam nada;
Já nem mais se aglomeram,
Correm desenfreados
Por ruelas comerciais
E empanturram-se
De superficialidades,
E quitam-nas
Com a alma leiloada
- Tivessem eles alma! -
O espaço público é um espetáculo
De vácuo intelectual,
De derrotismo arrogante,
De indiferença desumana,
De competição humilhante.
Concorre-se às filas das repartições
E aos produtos
E aos acessos
E aos transportes
E às aparências
E às aceitações
E às convenções,
Mas não se concorre pela puta da virtude
De regenerar este país geriátrico moribundo.
Não se reconhece a grandeza do ser emancipado
E a enormidade do coletivo afirmado
E liberado
E dignificado.
Os pupilos da psicopatia rebolam-se de rir,
Os darwinistas sociais socializam-se
Em comunhão.
Socializam-se;
Socializam todas as fatias do bolo,
Só entre eles,
Enquanto dizem que a festa é vossa.
E, agora,
Já não há mais lugar para migalhas,
Já não é tempo de exigir esmolas,
Porque os psicopatas precisam saciar uma fome
Cada vez mais vampiresca.
Celebram-se banquetes
Nos corredores da plutocracia,
Ornamentados pelas vossas colheitas,
Porque convenceram-vos
De que não tendes direito a elas.
Roubaram-vos o filme
E convenceram-vos a rasgar os papéis
E a entregar o protagonismo.
Convenceram-vos de que eles
- E somente eles -
São suficientemente responsáveis por vós.
Convenceram-vos de que sois estúpidos,
Incapacitados
E incompetentes
Para decidir o vosso próprio rumo.
Aceleraram-vos a vida
Para que passeis por ela desapercebidos,
Para que, compendiados na pequenez
Das certezas enferrujadas,
Ignoreis a simplicidade
E as insignificâncias.
Para que, brutos,
Arrebateis a maresia
E desprezeis a beleza
Das vossas próprias cidades.
Para que andeis sempre às pressas,
Resmungões
E atordoados
Uns com os outros.
Para que vos confineis
Em gavetas compartimentadas
E, exaustos,
Sucumbais à lobotomia do Quarto Poder.
Entregastes a chave
De todos os baluartes,
Até dos não descobertos,
E jurastes,
Sob os auspícios de um hino escroto
E uma bandeira ensanguentada
Que defenderíeis esta ordem
Se necessário à base de canhões.
Jurastes o martírio por uma divindade canibal
Alinhada aos palatinos do mercado.
Mas,
Mais do que isto,
Jurais todos os dias
- Não um juramento cerimonial,
Mas um juramento prático e consequente -
Não interferir
E deixar o laço apertar
À volta do vosso pescoço.
E não sois irresponsáveis
E não fazeis barulho.
Jurastes deixar as ruas em paz
Para os papéis desprendidos
Das latrinas urbanas
Não deixarem de circular
Em redemoinhos,
Para a poeira não deixar de entorpecer,
Para as árvores que restam se embrutecerem
Até darem lugar a novas geometrias cinzentas
Tão inúteis quanto as que cerram a coisa pública
Para protegerem-na
Da via pública,
Da vontade pública;
Que é tão nociva
E inconveniente
E temida.
Jurastes por tradicionalismos
E por amontoados de brasões patéticos
Que sustentaríeis a puta da pátria
Mesmo que ela significasse
O masoquismo social que de fato se manifesta.
Jurastes o papel dentro de cubículos,
Celebrastes o isolamento,
Masturbastes-vos nos escrutínios
Já muito bem peneirados
E arranjados.
E, por fim,
Pedistes desculpas
Pelo estrondo
E pelo exagero
De cada pequeno sussurro
E cada pequeno suspiro
E cada pequeno choro
E cada pequena vontade
E cada pequena vastidão de sentimentos
Que acometem o interior
- E abrem caminho
Com a violência de uma erupção -
Daqueles que teimam
Em sentir humanidade
E daqueles que insistem
Em não envelhecer
Por mais velhos que já estejam.
E, como eu,
Insistem em perguntar-vos,
Se não vos importais,
E se não vos cansais.
E insistem porque a história ensina
Que a insistência é labareda em eucalipto;
Chamas para quebrar o gelo dos emplastros,
Dos amordaçados de espírito,
Dos desavisados
Dos adormecidos,
Dos jovens envelhecidos
E dos velhos desonrados.
O gelo da engrenagem
Que emperra a esperança
E congela o vento da transformação.
Aceitastes a distopia
Como se destino fosse,
Como dedo divino,
Como ordem natural,
E a defendeis
Em cada esboço de cumplicidade
Impressa no silêncio,
No comodismo,
No derrotismo,
Na apatia patológica,
No consumismo alienante,
Na negação de protagonismo,
Na falta de agitação,
De carnaval,
De poesia,
De música,
De discernimento.
Aceitastes as ruas roubadas,
E higienizadas,
Aceitastes a uniformização da vida
Que não passa de antecipação da morte.
A morte que espreita
Nos bueiros,
Que dança
Nos redemoinhos,
Que se esconde pelas lixeiras,
Mas que só ataca
A quem se nega a viver
E corrói por dentro
Até que só reste carcaça consumidora
Eleitora,
Funcionária
E telespectadora.
Carcaça sem cidadania,
Sem empatia
E sem utopia.
A vossa carcaça,
Vazia,
Moribunda,
Branda,
Costumeira.
A maior crise
É a crise de cada indivíduo
Desprovido de afirmação,
De individualidade
E personalidade.
A lamentação não é uma virtude
E a indiferença nunca é neutra.
Não há maior culpado
Do que quem se resigna;
Não há maior cúmplice
Do que quem não questiona
E não desafia;
Não há maior traição
Do que o jingoísmo.
Por cada canto deste país rapinado,
Por cada esquina fantasma
De cidades desalmadas,
Onde o sorriso não floresce,
E as sementes não são regadas,
E as flores murcham,
E os amores se amaldiçoam,
E as convivências se permutam,
E as artes não engrandecem,
Há uma silhueta.
A silhueta da democracia prostituída.
E vós sois os proxenetas
Sem palavras, sem mãos e sem bolsos.
Políticos são apenas o vosso reflexo;
Os vossos carniceiros não vieram de nenhum lugar
Senão do vosso seio murcho
E dos vossos vícios labregos.
Assumi o timão perante o mar tempestuoso
Ou naufragareis nas profundezas da desonra.