Tuesday, May 27, 2014

A Amante

É claro que eu continuo irremediavelmente apaixonado 
Unicamente pela cidade mais bela, mágica, poética, 
Musical, encantadora, romântica, 
Libertina, misteriosa, fotogênica, 
Amaldiçoada, pecaminosa, visceral, 
Embriagante e inspiradora. 
É a ela que eu pertenço 
- por direito, por vício e por cumplicidade - 
E não a alguma mulher de alguma aventura carnal. 
Muitas garras podem arranhar as minhas costas 
Na expressão da libido,
Mas só as garras da Senhora do Leste,
Da Dama das Cem Torres, 
É que arranham o meu coração diariamente
Com toda a crueldade de uma amante sedenta. 
Do tesouro ela é o baluarte. 
É mais que o todo
E que a soma das partes.

Erasmus

Somos sempre tão jovens
Ou talvez nem tanto
Somos o mundo inteiro
Somos um só recanto
Somos todas as cores
E todas as línguas
Somos sabores e odores
De terras longínquas
Somos a confusão
A música e o vinho
Somos um só coração
E um mesmo caminho
Somos a aspiração
Da alma espairecida
Estudantes de novas lições
No curso da vida

Somos o frio da saudade
Da nossa gente e chão
Mas na nossa nova casa
Somos todos irmãos

E regressamos à terra
Com malas de corações
E a dor que fica no nosso
Disperso em mil porções

Somos uma utopia
Vivida a cada dia
De meses sempre tão curtos
Para tanta magia
Somos cada exagero
A ressaca e a catarse
Somos a paixão dos amantes
Quando transborda a amizade
Somos a cumplicidade
Em cada esquina
Somos da afinidade
Uma mera rotina
Somos o tom da expressão
Que colore a cidade
Somos a celebração
Da multiculturalidade

Thursday, May 22, 2014

Repúdio à Não Vida

Parte I

Aos que se movem por passos
sem caminhar de fato,
sem rumar pelos destinos da vida,
sem invadir as lacunas do mundo.
Aos procrastinadores do atarefamento,
atolados no estrume citadino
e nas funções de funcionários funcionais,
os velocistas das jornadas laborais,
confinados em caixotes móveis
que entorpecem a cidade com seu negrume gasoso.
Aos escravos da morbidez televisiva,
com vistas limitadas a um ângulo de sessenta graus.
Aos atinados modernos,
seres perdidos no mundo,
desencontrados de si mesmos.
Desatolem-se antes de serem enterrados
nesse estado de morte viva
dentro do próprio buraco
que a gravidade cavou no chão
com o peso da vossa consciência.
Caminhem contra o tempo
que vos consome feito fogo
e que esculpe em vosso semblante
a sua pressa implacável.
Fujam da loucura da normalidade,
da obediência às convenções,
da censura aos próprios sonhos.
Acordem e sonhem a realidade proibida
pela vertigem vertiginosa do acumulo do vazio,
pelo totalitarismo das ocupações inúteis
da engrenagem social.
Não há funeral mais desolador
do que a morte da vontade
e o estupro do impulso.
Não há vida mais valiosa
do que a morte por excesso de ousadia
e por excesso de negação prática
da própria morte moribunda.

Parte II

Morram,
mas morram empanturrados de vivência,
morram embriagados pela emoção,
morram esquartejados pela adrenalina,
decapitados pelo coração,
esfaqueados pela felicidade,
metralhados pelos abraços das amizades
e sufocados pelos beijos dos amores.
O privilégio da existência
é só dos que carregam
a refrescante exaustão da vida plena;
os demais, que vivem mortos,
só esperam que a carcaça seja enterrada,
por mais alucinados que aparentem
correndo em busca das doses diárias de nada.

Parte III

O pior sem-abrigo
é o que se desabriga da responsabilidade
de ser irresponsável.
O pior faminto
é o esfomeado de carnalidade,
o obsceno do pudor castrador,
o que não lava a alma
na chuva inconveniente
de uma noite depravada.
A tacanhice mais provinciana
é a dos urbanos
que desprezam o cheiro
da terra molhada
e o brilho do orvalho.
Não há maior covardia
do que a coragem de ocupar uma zona de conforto
que não passa de uma gaveta de concreto
onde cada suspiro é arquivado para sempre,
e cada desejo é compelido
em nome de um orgulho putrefato
que corrói feito câncer cada célula de dignidade.
Não há maior delírio religioso
do que a crença na própria perfeição,
e não há nada mais fútil
do que a inveja mórbida
da vida de quem não se suporta.



Sunday, May 18, 2014

O Diploma

Graduei-me nos exames práticos
Do asfalto frio e do vagão vazio
Do beco imundo e do quarto escuro
Dos copos e dos corpos
Dos livros empoeirados
Meu rasto é o meu currículo
A noite, minha docente
Nua e crua, ela ensinou
O que eu sei e o que eu sou
O teu diploma oficial
É um papel de convenção
Que decora o teu vazio
Com uma qualquer distinção
Vivendo a vida eu me formei
De caráter e de individualidade
Enquanto a cátedra te relegou
À academia da vaidade
O axiônimo do teu rabisco
Pode ser Mestre ou Doutor
Mas tua rubrica tem menos curvas
Do que a estrada que me formou
E pelos erros e desvios
Faço a vida que é minha
Não renego à minha vontade
Para encaixar-me na sociedade
E se por ti eu me perdi
Com isso também eu aprendi
Foste um teste que eu superei
A maior nota que eu tirei
Hoje eu olho para trás
E vejo o quanto eu cresci
E segues a vida parada
Lutando com velhos fantasmas
O que o futuro nos reserva
Até arrisco-me a prever
Transpiro a alma, sinto a essência
E tu sustentas uma aparência
A melancolia é o elo
Da nossa paz de cemitério
Do nosso amor é o duelo
Da sentença é o martelo
Mas a dor que a nós já não une
É diferente e eu sei por quê
Eu carrego o peso da vida
E tu flutuas sem viver.

Wednesday, May 14, 2014

Champanhe e Relva

Que ganhe ou perca o Benfica ou o Porto
Ou o caralho que vos fode com gosto
Porque vós já perdestes, não importa
E aceitastes, mansinhos, a derrota
Sois águia sem qualquer asa
Sois dragão que não inflama
Vereis a trupe dos Nunos Melos
E demais psicopatas da vida;
Estarão bebendo champanhe
Como bebem todos os dias
Em nome da vossa desgraça
E da vossa estupidez
E o farão mais uma vez
Sobre os degraus da altivez
E vós nada bebereis
Corja de cidadãos interinos
Porque sede vós não tendes
Só tendes sono, como os felinos
Mas faltam-vos garras
E vergonha nessas caras
E ousadia e desobediência
E até um pouco de violência
Para comerdes o banquete
Dos parasitas insolentes
Mas vós sois um rebanho
Empanturrado em relva sintética
A relva dos coliseus modernos
Antros da cegueira ludopédica.


Nota: um psicopata, da trupe dos "boys" dos corredores da plutocracia, vai à TV mostrar a garrafa de champanhe da sua farra em nome do povo. Este, por sua vez, não bebe champanhe, mas empanturra-se até ao talo de relva. Eu também gosto de futebol, em doses homeopáticas, relegando-o à reduzida importância que ele deve ter, sobretudo na vida de um povo que está sendo goleado pela crise dos fanfarrões de Lisboa e Bruxelas.

Tuesday, May 13, 2014

Beatriz

Numa rua escura
Idealizei-te
Fiz-me cosmopolita
Numa esquina da vida
A minha inocência
E a tua ternura
Arderam meu peito
Fiz-me aventureiro
Fui de ti à procura
Busquei-te em lapsos
Desvendei-me coragem
Cortejei-te em meus passos
Perdemo-nos na noite
Desafiamos os becos
Foste cúmplice fiel
Do meu crime perfeito
Desbravei estradas
Desfiz-me de amarras
Lapidei um romance
De lares distantes
Engoli a derrota
Chorando sem lágrimas
Numa guerra perdida
De batalhas vencidas
E quando a nossa distância
Um oceano alcançou
E eu, partido
Em lusas terras perdido
A tua voz, ressurgida
Quase que arrependida
Numa levada traquina
E pronúncia nordestina
Deixou-me a certeza
Da tua pureza
Edificou a tua lenda
E a tua singela nobreza
No ato do acaso
De uma noite eterna
Uma infância findada
E uma história criada
Da nossa aventura
Quimera do interior
Dei-me ao mundo;
Cosmopolita profundo
Mas mantive-me preso
Aos ares provincianos
Como em Aracaju
Por mais que passem os anos
Porque como a semente
De todas aquelas frutas
Está em mim plantada a guria
De Itaporanga D'Ajuda.


Nota: uma noite qualquer, sentado na esquina ouvindo música. Passa uma moça e eu a provoco. E é timidamente recíproco. E foi ali, numa praça vazia e vadia, algures em Aracaju. Um romance que acabou antes de começar, mas que me marcou tanto quanto a ela, a morena dos cabelos cacheados de Itaporanga.