Parte I
Aos que se movem por passos
sem caminhar de fato,
sem rumar pelos destinos da vida,
sem invadir as lacunas do mundo.
Aos procrastinadores do atarefamento,
atolados no estrume citadino
e nas funções de funcionários
funcionais,
os velocistas das jornadas laborais,
confinados em caixotes móveis
que entorpecem a cidade com seu negrume
gasoso.
Aos escravos da morbidez televisiva,
com vistas limitadas a um ângulo de sessenta graus.
Aos atinados modernos,
seres perdidos no mundo,
desencontrados de si mesmos.
Desatolem-se antes de serem enterrados
nesse estado de morte viva
dentro do próprio buraco
que a gravidade cavou no chão
com o peso da vossa consciência.
Caminhem contra o tempo
que vos consome feito fogo
e que esculpe em vosso semblante
a sua pressa implacável.
Fujam da loucura da normalidade,
da obediência às convenções,
da censura aos próprios sonhos.
Acordem e sonhem a realidade proibida
pela vertigem vertiginosa do acumulo
do vazio,
pelo totalitarismo das ocupações
inúteis
da engrenagem social.
Não há funeral mais desolador
do que a morte da vontade
e o estupro do impulso.
Não há vida mais valiosa
do que a morte por excesso de ousadia
e por excesso de negação prática
da própria morte moribunda.
Parte II
Morram,
mas morram empanturrados de vivência,
morram embriagados pela emoção,
morram esquartejados pela adrenalina,
decapitados pelo coração,
esfaqueados pela felicidade,
metralhados pelos abraços das amizades
e sufocados pelos beijos dos amores.
O privilégio da existência
é só dos que carregam
a refrescante exaustão da vida plena;
os demais, que vivem mortos,
só esperam que a carcaça seja
enterrada,
por mais alucinados que aparentem
correndo em busca das doses diárias de
nada.
Parte III
O pior sem-abrigo
é o que se desabriga da
responsabilidade
de ser irresponsável.
O pior faminto
é o esfomeado de carnalidade,
o obsceno do pudor castrador,
o que não lava a alma
na chuva inconveniente
de uma noite depravada.
A tacanhice mais provinciana
é a dos urbanos
que desprezam o cheiro
da terra molhada
e o brilho do orvalho.
Não há maior covardia
do que a coragem de ocupar uma zona de
conforto
que não passa de uma gaveta de
concreto
onde cada suspiro é arquivado para
sempre,
e cada desejo é compelido
em nome de um orgulho putrefato
que corrói feito câncer cada célula
de dignidade.
Não há maior delírio religioso
do que a crença na própria perfeição,
e não há nada mais fútil
do que a inveja mórbida
da vida de quem não se suporta.