Parte
I
Houve
certos dias mórbidos
Que
pareciam abrir passagem à morte
Dias
como lombra sem barato
Como
coito sem orgasmo
Como
o peso de uma existência que nos fode o juízo
E
o silêncio que parece a única melodia audível
Dias
que ainda ecoavam o passado
Que
marcavam o semblante cansado
Dias
deprimentes de eterno presente
De
um futuro cada vez mais ausente
Tudo
parecia sem rumo
Quando
o inverno se alongava
E
exalava a esmo a existência solitária
Todo
o cinza parecia eterno
E
a tristeza era a única dimensão
Havia
tempo que eu não brilhava
Dentro
de uma constelação
Meus
amigos pareciam miragem
Todos
emplastros da engrenagem social
Todos
ausentes e inconsequentes
Com
a virtude em pedaços
Tão
aguçados que nos perfuravam
E
nos dilaceravam as entranhas
Naquelas
noites frias e tacanhas
Acobertadas
pelos pretextos
Pelos
lamentos escusados
Pelos
planos empoeirados
Tudo
parecia o fim
O
rescaldo de um estopim
Os
espólios apodrecidos
Desvalidados
e sucumbidos
Tudo
parecia ressaca vinda de Praga
De
toda aquela debandada
E
nada mais que frivolidade
Com
elevadas doses de crueldade
Porque
eu queria a putaria das ruas
As
porra-louquices profícuas
Eu
queria ser desafiante e meter nojo
Queria
a volúpia, a luxúria e o gozo
E
eu só tinha a realidade bruta
A
realidade dos cidadãos responsáveis
Das
hordas teleguiáveis
E
eu me cegava com a claridade do dia útil
Desejando
viver apenas no crepúsculo
Mas
a noite que é tão matreira
E
que nos envolve ainda que sorrateira
E
que se incumbe sem parcimônia
De
ostentar toda a cachimônia
A
noite que é uma porta
E
que nos livra de toda a masmorra
A
noite que já é adulta
Que
exerce o peso e infringe a culpa
Reservou-me
os seus cenários
Seus
devaneios e seus ensaios
E
dela cantaram vozes desafinadas
Mas
que a prosa teciam com embalo
E
surgiram as viagens
As êxtases urbanas
As
drogas mundanas
Substâncias
que profanam a vergonha
E
fluem os disparos verbais
E
fundam cumplicidades etílicas
E
unem necessidades iguais
E
nos desencontros invernais
Na
fuga às querelas sentimentais
Surgiu
o espectro das cores setentistas
E
piqueniques com cheiro de maresia
E
novas tretas com samba e enredo
Nos
carnavais banhados em vinho azedo
Nas
balbúrdias das repúblicas
E
nas ruelas escuras e úmidas
Ou
junto ao d'Ouro com as gaivotas
Nas
noites frias esquentadas com vodka
E
de um grupelho surgido do acaso
Fez-se,
sem pacto, muitos novos laços
E
uma ideia efervesceu num compasso
E
como um imã atraiu toda a gente
De
proveniências tão diferentes
E
logo foi a invasão de brasileiros
E
um turco e alguns portugueses
E
italianos e também poloneses
E
da Grécia vinha uma artista
Que
no samba mostrava a sua pinta
E
outra grega em romance com um alemão
Ensinava
como todos os povos são irmãos
E
todos partilhavam suas casas
E
ofereciam belas jantaradas
Mas
foram jardins e terrenos baldios
Os
refúgios que mais nos uniram
Além
das sinceras amizades
E
das virtudes que transbordavam
Por
cada canto da cidade
Que
embora permanecesse cinzenta
Já
tinha todas as tonalidades
E
o frio já não mais assombrava
Com
o calor de abraços afetivos
Com
goles cada vez mais excessivos
E
cantigas em parques escuros
E
nas calçadas de ruas abarrotadas
E
saraus em cada canto perdido
Em
cada espaço que se achava
Numa
cidade que eu tão pouco explorara
E
os sabores que cada um trazia de casa
Formou-se
uma confraria anárquica
E
quando me flagrei já forasteiro
Dado
ao Porto como nunca havia feito
Desvendei
tudo o que sempre se escondera
E
até vi o vislumbre de certa beleza
No
rosto jovem de sorrisos sinceros
Nos
amigos que nem sei bem de onde vieram
E
foi lá, naquela casinha esbelta e raquítica
-
e noutras espalhadas pela Invicta -
Que
encontrei a minha redenção
E
recuperei toda a minha paixão
Para
voltar a sentir tesão pela vida
Para
suspirar com o sabor de cada investida
E
me encantar com as pessoas
Como
se já não houvesse mais rancores
Como
se cada aurora suprimisse as dores
A
casinha que era mais um casebre
O
casebre de paredes tão frias
Com
calor humano que tanto aquecia
Revestiu-se
de pura magia
Mesmo
naquela rua sombria
Cheia
de gunas e de vícios labregos
Um
casebre que emergia da mediocridade
E
emergia de quase toda a cidade
A
cidade que me pusera um revés
E
que então eu subvertia
Com
carradas de tanta empatia
O
casebre que me abrigou e que eu adotei
O
casebre que poderia ter sido outro
Não
fosse nele toda a confluência
De
amizades e experiências
Não
fosse nele toda a alucinogenia
Com
charros de haxixe e garrafas vadias
Não
fosse ele o antro da libertinagem
Das
paixões reais e das meras catarses
Não
fosse a casa do Ozan e da Chiara
Não
fosse a rua a Travessa das Almas.