Tuesday, February 10, 2015

A Mutilação (Haikai)

Regozijo. Auge do delírio.
Água fria; resgate dos sentidos
Na sobriedade eu me auto-mutilo.

O Rescaldo (Haikai)

Dia. Suspira nostalgia,
Tempo hiberne. Vento
Sopra-me maresia.

Uma Breve Eternidade

O que fazer destes poemas
E destas páginas rasgadas
E dos épicos epílogos
Desta obra inacabada?

E as canções que desafinam
Com os nós na garganta
E os acordes dissonantes
Que a minha mão já não alcança?

E a aflição das incertezas
Nas forasteiras madrugadas
E o alívio imediato
De quando, enfim, te entregavas?

E esta cidade ao avesso,
Será, então, desvirada?
E as inconsequências
Já não terão alvorada?

E os mistérios das ruas
Serão, então, revelados
Quando a tua presença
Já não espreitar de nenhum lado?

E todos aqueles cantos
Onde o teu mel eu bebi
Serão apenas guardiões
De nostalgia sem fim?

E a tua memória
Nesta cidade tão tua
Perseguir-me-á
Implacável por cada rua?

O que dirá o futuro
quando fores "só uma lembrança"
E eu andar pela Baixa
À procura da tua esperança?

O meu coração que é teu
Desprovido de razão
Sabe que inútil é o talento
Quando não há inspiração

Por isto a tua partida
Em virtude me empobrece
E a magnitude é só tua
Porque nada de ti se esquece

E do caos que é o teu mundo
Que ao menos possas entender:
No meu coração um dia entraste
Para mais forte ele bater.

O Espectro

A robustez da tua ausente presença,
Tão convidativa à loucura,
Tão amarga e tão criativa.
Esta cidade tão pequena para nós dois
Sugere a surpresa inoportuna,
Atrai-nos um ao outro
Por essas ruas deslizantes e apelativas.
A tua iminência sopra-me nos ouvidos
Como uma brisa mensageira,
Como o suspiro do perigo
Ou como a sorte retumbante.
Nem o inquieto manancial que nos separa
Resgata trégua da inevitabilidade,
E não oferece obstáculo
Ao teu vício de invadir-me território
E penetrar-me a temperança.
Estás na silhueta ao relento,
Nos caracóis deambulantes,
Nos passos desajustados.
Estás nas vestes banais,
Na portugalidade,
Na pronúncia do Norte.
Estás nas ruelas,
Nas calçadas vomitadas,
Nos largos escuros,
No trânsito ruidoso.
Estás nos vultos dançantes,
Nos passos cambaleantes,
Nas gargalhadas estridentes.
Estás nos casais que me atormentam,
Nas aventuras noturnas,
Em cada rosto que me encara.
Estás no meu medo,
Na minha aflição,
Na ansiedade que corrói,
Na eterna insônia.
Estás em todo o lado
E em lado nenhum.

Arte Viva

És a mais bela obra
Esculpida pela maestria da Mãe Natureza,
Modelada aos moldes da tua imperfeição
Que é tão perfeita!
Terias sido a inspiração vitruviana de Da Vinci
E és a minha inspiração poética por excelência.
E esta inspiração é uma concessão
Para tocar-te,
Como se fosses um diamante bruto
Perdido em terra apodrecida
E maculado por mãos de sujos garimpos,
E lapidar-te por dentro,
Neste teu caos visceral,
E transformar-te na tua própria garimpeira
Até que te apercebas da raridade que és
E do valor que tens para este simples andarilho
Que vê nos teus quilates
O peso bruto do afeto.
Nos teus passos tortos e cambaleantes
Está o ritmo da minha harmonia palpitante
Na tua expressão infantil está a pureza
De uma megera que fere sem se armar,
Nos teus cabelos vagabundos
Estão as curvas da perdição
Neste caminho que sigo em tua busca,
Na tua voz está o pirógrafo que me incendeia,
Na tua ausência está a poesia que me corrói
E no teu nome está a assinatura
Da única expressão artística
Exposta no museu do meu coração.

Arquitetura do Amor

O que faremos deste edifício que chega às nuvens
Mas que agora só oferece entrada para o inferno?
O que faremos desta estrutura megalómana
Edificada pela embriaguez, pelo desespero,
Pelos exageros inevitáveis
E pela cumplicidade mais pura?
Que nos condene Afrodite
Pelo pecado de não residirmos barricados
Contra o mundo
Dentro desta nossa construção tão dispendiosa
Erguida num verão úmido,
Posta à prova num outono labiríntico
E abandonada no rescaldo de um inverno
Como todos os outros.
Quem a habitará,
Agora que fugiste
Para seres um sem-abrigo
À mercê da tua própria chuva de inconsequência?
Sozinho não caibo num espaço que é de dois!
Quem, neste mundo, ainda terá a coragem
De habitar o amor?
De construí-lo! Tijolo a tijolo!
Mesmo levando, quiças, fortuitas tijoladas.
Quem se abrigará no amor alheio?
Que ao menos se inspirem nas nossas ruínas
Antes que elas desmoronem
Após uma das nossas tempestades
Ou se perca debaixo de uma avalanche
Deste mundo frio.
Mas o mais provável é que ela seja devorada,
Da base ao teto,
Pelo tempo.
E apodreça carcomida pela flora
Das sucessivas primaveras.
E, talvez, num verão ensolarado,
O acaso nos confronte,
E com o amor já sepultado
Sob as ruínas desta nossa obra
Talvez possamos iniciar outra,
Menos pesada e mais flutuante,
Ou simplesmente deixar a chuva cair
Sobre nossas cabeças
Sem nos abrigarmos,
Até que a enxurrada nos escorra para algum lado.

O Relento

Veio, molhou e abrandou, a chuva:
Um espelho, no chão, formado.
De postes luzes atiram-se, em raios,
E colorem vidros embaçados.

Os trilhos do trem que não passa
São lâminas encandecidas,
E no banco molhado da praça
Recolho-me à dormida.

A garoa que me acomete, sutil,
E que a minha alma lava,
São lágrimas acumuladas;
Sorrio e dou-lhe a cara.

Na frescura da manhã eu colho
Cada porção de primavera
Que soprou a calada da noite
E trouxe o cheiro de terra.