Saturday, August 9, 2014

Travessa das Almas

Parte I

Houve certos dias mórbidos
Que pareciam abrir passagem à morte
Dias como lombra sem barato
Como coito sem orgasmo
Como o peso de uma existência que nos fode o juízo
E o silêncio que parece a única melodia audível
Dias que ainda ecoavam o passado
Que marcavam o semblante cansado
Dias deprimentes de eterno presente
De um futuro cada vez mais ausente
Tudo parecia sem rumo
Quando o inverno se alongava
E exalava a esmo a existência solitária
Todo o cinza parecia eterno
E a tristeza era a única dimensão
Havia tempo que eu não brilhava
Dentro de uma constelação
Meus amigos pareciam miragem
Todos emplastros da engrenagem social
Todos ausentes e inconsequentes
Com a virtude em pedaços
Tão aguçados que nos perfuravam
E nos dilaceravam as entranhas
Naquelas noites frias e tacanhas
Acobertadas pelos pretextos
Pelos lamentos escusados
Pelos planos empoeirados
Tudo parecia o fim
O rescaldo de um estopim
Os espólios apodrecidos
Desvalidados e sucumbidos
Tudo parecia ressaca vinda de Praga
De toda aquela debandada
E nada mais que frivolidade
Com elevadas doses de crueldade
Porque eu queria a putaria das ruas
As porra-louquices profícuas
Eu queria ser desafiante e meter nojo
Queria a volúpia, a luxúria e o gozo
E eu só tinha a realidade bruta
A realidade dos cidadãos responsáveis
Das hordas teleguiáveis
E eu me cegava com a claridade do dia útil
Desejando viver apenas no crepúsculo
Mas a noite que é tão matreira
E que nos envolve ainda que sorrateira
E que se incumbe sem parcimônia
De ostentar toda a cachimônia
A noite que é uma porta
E que nos livra de toda a masmorra
A noite que já é adulta
Que exerce o peso e infringe a culpa
Reservou-me os seus cenários
Seus devaneios e seus ensaios
E dela cantaram vozes desafinadas
Mas que a prosa teciam com embalo
E surgiram as viagens
As êxtases urbanas
As drogas mundanas
Substâncias que profanam a vergonha
E fluem os disparos verbais
E fundam cumplicidades etílicas
E unem necessidades iguais
E nos desencontros invernais
Na fuga às querelas sentimentais
Surgiu o espectro das cores setentistas
E piqueniques com cheiro de maresia
E novas tretas com samba e enredo
Nos carnavais banhados em vinho azedo
Nas balbúrdias das repúblicas
E nas ruelas escuras e úmidas
Ou junto ao d'Ouro com as gaivotas
Nas noites frias esquentadas com vodka
E de um grupelho surgido do acaso
Fez-se, sem pacto, muitos novos laços
E uma ideia efervesceu num compasso
E como um imã atraiu toda a gente
De proveniências tão diferentes
E logo foi a invasão de brasileiros
E um turco e alguns portugueses
E italianos e também poloneses
E da Grécia vinha uma artista
Que no samba mostrava a sua pinta
E outra grega em romance com um alemão
Ensinava como todos os povos são irmãos
E todos partilhavam suas casas
E ofereciam belas jantaradas
Mas foram jardins e terrenos baldios
Os refúgios que mais nos uniram
Além das sinceras amizades
E das virtudes que transbordavam
Por cada canto da cidade
Que embora permanecesse cinzenta
Já tinha todas as tonalidades
E o frio já não mais assombrava
Com o calor de abraços afetivos
Com goles cada vez mais excessivos
E cantigas em parques escuros
E nas calçadas de ruas abarrotadas
E saraus em cada canto perdido
Em cada espaço que se achava
Numa cidade que eu tão pouco explorara
E os sabores que cada um trazia de casa
Formou-se uma confraria anárquica
E quando me flagrei já forasteiro
Dado ao Porto como nunca havia feito
Desvendei tudo o que sempre se escondera
E até vi o vislumbre de certa beleza
No rosto jovem de sorrisos sinceros
Nos amigos que nem sei bem de onde vieram
E foi lá, naquela casinha esbelta e raquítica
- e noutras espalhadas pela Invicta -
Que encontrei a minha redenção
E recuperei toda a minha paixão
Para voltar a sentir tesão pela vida
Para suspirar com o sabor de cada investida
E me encantar com as pessoas
Como se já não houvesse mais rancores
Como se cada aurora suprimisse as dores
A casinha que era mais um casebre
O casebre de paredes tão frias
Com calor humano que tanto aquecia
Revestiu-se de pura magia
Mesmo naquela rua sombria
Cheia de gunas e de vícios labregos
Um casebre que emergia da mediocridade
E emergia de quase toda a cidade
A cidade que me pusera um revés
E que então eu subvertia
Com carradas de tanta empatia
O casebre que me abrigou e que eu adotei
O casebre que poderia ter sido outro
Não fosse nele toda a confluência
De amizades e experiências
Não fosse nele toda a alucinogenia
Com charros de haxixe e garrafas vadias
Não fosse ele o antro da libertinagem
Das paixões reais e das meras catarses
Não fosse a casa do Ozan e da Chiara
Não fosse a rua a Travessa das Almas.

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