Friday, August 29, 2014

A Dança

Noite, espectro tenso.
Palco do desprendimento;
A testemunha da vida que geme
No porão do medo.
Lembras-te de quando saltitávamos
Na via dos soterrados
E libertávamos paredes?
Dançávamos
Porque não podiam dançar
Todas aquelas árvores processadas
Em poluição visual.
Dançávamos
A dança do silêncio
Dos quarteirões leiloados
Da história abandonada
Ruindo por todos os lados,
Bloco a bloco,
Sobre vultos trafegantes
E claudicantes,
Seus diletantes.
Dançávamos
O silêncio labrego
Dos filhos do provincianismo;
Éramos ridículos
Porque eles não ouviam a música,
Tampouco o grito.
Dançávamos o corpo
Para contrariar a rigidez das casas-torres.
Contorcíamos a mente
Para iluminar os bastidores.
O maior terror de uma cidade fantasma
É o calvário voluntário
Dos seus espíritos implodidos
Reduzidos a nada.

Sunday, August 17, 2014

Brandos Costumes

Às vezes;
Todas as vezes.
Encaro-vos
E pergunto-me
Como se vos perguntasse
Se não vos importais.
Se, de fato, não vos importais.
Pergunto-me,
Fitando-vos,
Como podeis ser tão pacientes
E como podeis ser tão inconsequentes.
Pergunto-me
Onde está o brio dos jovens
E a juventude dos velhos.
Pergunto-me
Se há sangue a correr-vos nas veias.
Todos os dias
São dias de olhar para vós
E perguntar-me
Se ainda sabeis
O que a dignidade significa,
Ou se alguma vez o soubestes.
Quando pareceis, todos,
Membros de uma seita geriátrica terminal
Fanática pelos brandos costumes,
Arraigada no conforto do vitimismo
Como raízes que apodrecem
Em terra pútrida
E não arredam pé.
As ruas estão hibernadas
E esbranquiçadas,
Abrem caminho à tempestade
De toda a poeira que já não cabe
Debaixo dos tapetes.
E as folhas
Das poucas árvores restantes
Se recusam a dançar
A dança da concertação.
A relva vadia
Engole os jardins silenciados
No mesmo ritmo dos tentáculos
Que trepam as colunas dos palácios,
Luxuriam-se nos corredores da promiscuidade
E abocanham os altares.
E, cá fora,
os aglomerados não dissecam nada;
Já nem mais se aglomeram,
Correm desenfreados
Por ruelas comerciais
E empanturram-se
De superficialidades,
E quitam-nas
Com a alma leiloada
- Tivessem eles alma! -
O espaço público é um espetáculo
De vácuo intelectual,
De derrotismo arrogante,
De indiferença desumana,
De competição humilhante.
Concorre-se às filas das repartições
E aos produtos
E aos acessos
E aos transportes
E às aparências
E às aceitações
E às convenções,
Mas não se concorre pela puta da virtude
De regenerar este país geriátrico moribundo.
Não se reconhece a grandeza do ser emancipado
E a enormidade do coletivo afirmado
E liberado
E dignificado.
Os pupilos da psicopatia rebolam-se de rir,
Os darwinistas sociais socializam-se
Em comunhão.
Socializam-se;
Socializam todas as fatias do bolo,
Só entre eles,
Enquanto dizem que a festa é vossa.
E, agora,
Já não há mais lugar para migalhas,
Já não é tempo de exigir esmolas,
Porque os psicopatas precisam saciar uma fome
Cada vez mais vampiresca.
Celebram-se banquetes
Nos corredores da plutocracia,
Ornamentados pelas vossas colheitas,
Porque convenceram-vos
De que não tendes direito a elas.
Roubaram-vos o filme
E convenceram-vos a rasgar os papéis
E a entregar o protagonismo.
Convenceram-vos de que eles
- E somente eles -
São suficientemente responsáveis por vós.
Convenceram-vos de que sois estúpidos,
Incapacitados
E incompetentes
Para decidir o vosso próprio rumo.
Aceleraram-vos a vida
Para que passeis por ela desapercebidos,
Para que, compendiados na pequenez
Das certezas enferrujadas,
Ignoreis a simplicidade
E as insignificâncias.
Para que, brutos,
Arrebateis a maresia
E desprezeis a beleza
Das vossas próprias cidades.
Para que andeis sempre às pressas,
Resmungões
E atordoados
Uns com os outros.
Para que vos confineis
Em gavetas compartimentadas
E, exaustos,
Sucumbais à lobotomia do Quarto Poder.
Entregastes a chave
De todos os baluartes,
Até dos não descobertos,
E jurastes,
Sob os auspícios de um hino escroto
E uma bandeira ensanguentada
Que defenderíeis esta ordem
Se necessário à base de canhões.
Jurastes o martírio por uma divindade canibal
Alinhada aos palatinos do mercado.
Mas,
Mais do que isto,
Jurais todos os dias
- Não um juramento cerimonial,
Mas um juramento prático e consequente -
Não interferir
E deixar o laço apertar
À volta do vosso pescoço.
E não sois irresponsáveis
E não fazeis barulho.
Jurastes deixar as ruas em paz
Para os papéis desprendidos
Das latrinas urbanas
Não deixarem de circular
Em redemoinhos,
Para a poeira não deixar de entorpecer,
Para as árvores que restam se embrutecerem
Até darem lugar a novas geometrias cinzentas
Tão inúteis quanto as que cerram a coisa pública
Para protegerem-na
Da via pública,
Da vontade pública;
Que é tão nociva
E inconveniente
E temida.
Jurastes por tradicionalismos
E por amontoados de brasões patéticos
Que sustentaríeis a puta da pátria
Mesmo que ela significasse
O masoquismo social que de fato se manifesta.
Jurastes o papel dentro de cubículos,
Celebrastes o isolamento,
Masturbastes-vos nos escrutínios
Já muito bem peneirados
E arranjados.
E, por fim,
Pedistes desculpas
Pelo estrondo
E pelo exagero
De cada pequeno sussurro
E cada pequeno suspiro
E cada pequeno choro
E cada pequena vontade
E cada pequena vastidão de sentimentos
Que acometem o interior
- E abrem caminho
Com a violência de uma erupção -
Daqueles que teimam
Em sentir humanidade
E daqueles que insistem
Em não envelhecer
Por mais velhos que já estejam.
E, como eu,
Insistem em perguntar-vos,
Se não vos importais,
E se não vos cansais.
E insistem porque a história ensina
Que a insistência é labareda em eucalipto;
Chamas para quebrar o gelo dos emplastros,
Dos amordaçados de espírito,
Dos desavisados
Dos adormecidos,
Dos jovens envelhecidos
E dos velhos desonrados.
O gelo da engrenagem
Que emperra a esperança
E congela o vento da transformação.
Aceitastes a distopia
Como se destino fosse,
Como dedo divino,
Como ordem natural,
E a defendeis
Em cada esboço de cumplicidade
Impressa no silêncio,
No comodismo,
No derrotismo,
Na apatia patológica,
No consumismo alienante,
Na negação de protagonismo,
Na falta de agitação,
De carnaval,
De poesia,
De música,
De discernimento.
Aceitastes as ruas roubadas,
E higienizadas,
Aceitastes a uniformização da vida
Que não passa de antecipação da morte.
A morte que espreita
Nos bueiros,
Que dança
Nos redemoinhos,
Que se esconde pelas lixeiras,
Mas que só ataca
A quem se nega a viver
E corrói por dentro
Até que só reste carcaça consumidora
Eleitora,
Funcionária
E telespectadora.
Carcaça sem cidadania,
Sem empatia
E sem utopia.
A vossa carcaça,
Vazia,
Moribunda,
Branda,
Costumeira.
A maior crise
É a crise de cada indivíduo
Desprovido de afirmação,
De individualidade
E personalidade.
A lamentação não é uma virtude
E a indiferença nunca é neutra.
Não há maior culpado
Do que quem se resigna;
Não há maior cúmplice
Do que quem não questiona
E não desafia;
Não há maior traição
Do que o jingoísmo.
Por cada canto deste país rapinado,
Por cada esquina fantasma
De cidades desalmadas,
Onde o sorriso não floresce,
E as sementes não são regadas,
E as flores murcham,
E os amores se amaldiçoam,
E as convivências se permutam,
E as artes não engrandecem,
Há uma silhueta.
A silhueta da democracia prostituída.
E vós sois os proxenetas
Sem palavras, sem mãos e sem bolsos.
Políticos são apenas o vosso reflexo;
Os vossos carniceiros não vieram de nenhum lugar
Senão do vosso seio murcho
E dos vossos vícios labregos.
Assumi o timão perante o mar tempestuoso
Ou naufragareis nas profundezas da desonra.

O Passeio da Saudade

Neste dia quente de verão, acabei de dar um belo e longo passeio por Praga, pelas ruas das sete diferentes casas onde morei. Sorri melancolicamente olhando para as portas que tanto abri - nalgumas o fiz camufladamente para não ser visto por certas inconveniências. Depois fui me abastecer em cada um dos meus bares favoritos: primeiro o Mandragora, em Vinohrady, para visitar o Milan e a Šarka e ser obrigado a beber um shot de Slivovice caseira, depois fui a Žižkov, o bairro mais alternativo e decadente da cidade, beber cerveja no Herba, pequenino e punk, e depois no Bohužel, onde encontrei os crusties. Já etilicamente alegre, fui petiscar algo no abarrotado Hany Bany, ali pertinho da ponte famosa, e depois voltei a ter sede e fiz nova investida no Atmoška, e ao sair dele bastou atravessar a rua para jantar no Lehká Hlava, o meu restaurante vegetariano favorito, onde comi risotto e bebi limonada com hortelã. Já anoitecendo, fui a um concerto de Blues com Stan The Man no Jazz Republic, onde bebi vinho branco da Morávia, e quando chegou a meia noite fui correndo ao Vagon, onde me desfiz em Rock and Roll antigo e acabei sendo arrastado para dentro do banheiro por uma moça que usava uma camisa de Pink Floyd. Depois, às cinco da manhã, embriagado e satisfeito, fui pelo trilho do elétrico 22 rumando direto a Hostivař, mas a tentação me fez sair na paragem anterior e entrar no Marat'ak, porque, mesmo com a dada debandada, ao menos a Monika estaria lá, além dos velhotes operários carcomidos com quem eu poderia jogar dardos.


Foi um dia em cheio, tipicamente praguense. Obrigado, Google Maps.

Saturday, August 16, 2014

A Plenitude

Vida vivida é vida suada
No rosto estampada
Na pele traçada

É fim atingido
Ferida ardente
Sangue escorrido
Coração consequente

Vida imaculada é vida desperdiçada
Baluarte sem ouro
Cheio de nada

É achado perdido
Tempo corrido
Acaso tramado
Amor racionado

Vida é angústia e satisfação
É a ofegância do risco
Vida é explosão

A plena existência não obedece a caprichos
É entrega profunda que se inflama
Nos empecilhos.

A Lombra

Faz-se prolongar indevidamente, a noite,
Transcorrida largamente pela lentidão dos ponteiros,
De segundos que se arrastam, hipnotizados,
E pelo ritmo atenuado de sapatos estaladiços.
A dança paulatina das árvores ao léu
Interpola a desforra moribunda
No epílogo do limbo urbano;
Escombros humanos soterrados na penumbra,
Na sarjeta,
Na decadência poética,
No esgoto do livre arbítrio,
Dichavando a perdição,
Entornando tinto seco goela abaixo,
Encarando a pose arrogante das gaivotas famintas
E o desfile de carcaças distintas
Na passarela dos emborrachados.

Engolidos pela madrugada desacelerada,
Pela rouquidão da sombra motorizada
Que suga a produção inútil da vida noturna;
Espólios da boemia gentrificada.
Os resquícios de luxúria se dissolvem nas atenuantes,
Nas luzes flamejantes difusas,
Tanto quanto nos dissolvemos nos delírios
Das gargalhadas histéricas
E na leveza desvairada.

A invocação matutina é o absurdo dos sentidos,
É a visão turva e desajustada,
A silhueta trêmula; valsa de cadência cambaleante
Nos passeios padronizados.
Mentes despidas, centrifugadas e aceleradas
Em conjeturas que se sucedem inacabadas.

Thursday, August 14, 2014

Alessandra

Pessoas passam
E por elas passamos
A vida é um amontoado de passados
É como a terra fresca
Que perfuma a manhã bucólica
É como uma melodia
Que soa melancólica
É como tudo o que só é lembrado
Quando é de fato sentido
É como aquele sorriso
Que mais parece um abraço,
Ou um abreijo,
Que nos cobre feito agasalho
E entrelaça afetos
E que como a empatia
Parece um toque de magia

A vida que é feita de acasos
E dos seus enganos
Também é feita de encantos
De partituras e compassos
De presentes que curam passados
De pessoas que vêm e não passam
Por mais que se deem nos passos
Por mais distantes que estejam de um abraço

A vida é a fortaleza das insignificâncias
E a destreza que as transforma em grandezas
E se a vida é feita de tudo o que falta
A vida é feita de ti
Da tua presença dentro de mim
E se na vida há beleza
Ela é a tua existência
Passando e ficando
No rasto de cada vivência.


Nota: dedicado a Alessandra Caronna, italiana de Palermo, uma das pessoas mais simpáticas e contagiantes que tive o prazer de conhecer. Aliás, ela é a própria personificação da empatia.

Monday, August 11, 2014

Solidão

Nunca se deve a solidão subestimar
O mal necessário que ela tanto é
Tanto quanto uma semente que dá o pé
Quando dos prantos faz-se brotar

A introspecção fácil pode não ser
Mas quem consigo próprio não sabe lidar
Tampouco far-se-á acompanhar
Tendo feridas expostas sem as coser.

Terra do Adeus

Neste burgo tão pesado
As esquinas são lapsos
Memórias quase grafitadas
Palcos de tristes abraços

Quão encharcado é o Agosto
Regado tão a contragosto
Com gotas caídas do céu
Ou escorridas pelo meu rosto

São tantos aqueles que vêm
A esta terra só de passagem
E antes que outros venham também
Deixam marcas e seguem viagem

No saldo destas andanças
Dos que vêm e vão
Tão só sempre fico eu
Na terra do adeus

Mas eu próprio só passo por cá
Já tanto me fui e tanto regressei
E como bom andarilho que sou
Sei que um dia novamente me irei.

Saturday, August 9, 2014

Travessa das Almas

Parte I

Houve certos dias mórbidos
Que pareciam abrir passagem à morte
Dias como lombra sem barato
Como coito sem orgasmo
Como o peso de uma existência que nos fode o juízo
E o silêncio que parece a única melodia audível
Dias que ainda ecoavam o passado
Que marcavam o semblante cansado
Dias deprimentes de eterno presente
De um futuro cada vez mais ausente
Tudo parecia sem rumo
Quando o inverno se alongava
E exalava a esmo a existência solitária
Todo o cinza parecia eterno
E a tristeza era a única dimensão
Havia tempo que eu não brilhava
Dentro de uma constelação
Meus amigos pareciam miragem
Todos emplastros da engrenagem social
Todos ausentes e inconsequentes
Com a virtude em pedaços
Tão aguçados que nos perfuravam
E nos dilaceravam as entranhas
Naquelas noites frias e tacanhas
Acobertadas pelos pretextos
Pelos lamentos escusados
Pelos planos empoeirados
Tudo parecia o fim
O rescaldo de um estopim
Os espólios apodrecidos
Desvalidados e sucumbidos
Tudo parecia ressaca vinda de Praga
De toda aquela debandada
E nada mais que frivolidade
Com elevadas doses de crueldade
Porque eu queria a putaria das ruas
As porra-louquices profícuas
Eu queria ser desafiante e meter nojo
Queria a volúpia, a luxúria e o gozo
E eu só tinha a realidade bruta
A realidade dos cidadãos responsáveis
Das hordas teleguiáveis
E eu me cegava com a claridade do dia útil
Desejando viver apenas no crepúsculo
Mas a noite que é tão matreira
E que nos envolve ainda que sorrateira
E que se incumbe sem parcimônia
De ostentar toda a cachimônia
A noite que é uma porta
E que nos livra de toda a masmorra
A noite que já é adulta
Que exerce o peso e infringe a culpa
Reservou-me os seus cenários
Seus devaneios e seus ensaios
E dela cantaram vozes desafinadas
Mas que a prosa teciam com embalo
E surgiram as viagens
As êxtases urbanas
As drogas mundanas
Substâncias que profanam a vergonha
E fluem os disparos verbais
E fundam cumplicidades etílicas
E unem necessidades iguais
E nos desencontros invernais
Na fuga às querelas sentimentais
Surgiu o espectro das cores setentistas
E piqueniques com cheiro de maresia
E novas tretas com samba e enredo
Nos carnavais banhados em vinho azedo
Nas balbúrdias das repúblicas
E nas ruelas escuras e úmidas
Ou junto ao d'Ouro com as gaivotas
Nas noites frias esquentadas com vodka
E de um grupelho surgido do acaso
Fez-se, sem pacto, muitos novos laços
E uma ideia efervesceu num compasso
E como um imã atraiu toda a gente
De proveniências tão diferentes
E logo foi a invasão de brasileiros
E um turco e alguns portugueses
E italianos e também poloneses
E da Grécia vinha uma artista
Que no samba mostrava a sua pinta
E outra grega em romance com um alemão
Ensinava como todos os povos são irmãos
E todos partilhavam suas casas
E ofereciam belas jantaradas
Mas foram jardins e terrenos baldios
Os refúgios que mais nos uniram
Além das sinceras amizades
E das virtudes que transbordavam
Por cada canto da cidade
Que embora permanecesse cinzenta
Já tinha todas as tonalidades
E o frio já não mais assombrava
Com o calor de abraços afetivos
Com goles cada vez mais excessivos
E cantigas em parques escuros
E nas calçadas de ruas abarrotadas
E saraus em cada canto perdido
Em cada espaço que se achava
Numa cidade que eu tão pouco explorara
E os sabores que cada um trazia de casa
Formou-se uma confraria anárquica
E quando me flagrei já forasteiro
Dado ao Porto como nunca havia feito
Desvendei tudo o que sempre se escondera
E até vi o vislumbre de certa beleza
No rosto jovem de sorrisos sinceros
Nos amigos que nem sei bem de onde vieram
E foi lá, naquela casinha esbelta e raquítica
- e noutras espalhadas pela Invicta -
Que encontrei a minha redenção
E recuperei toda a minha paixão
Para voltar a sentir tesão pela vida
Para suspirar com o sabor de cada investida
E me encantar com as pessoas
Como se já não houvesse mais rancores
Como se cada aurora suprimisse as dores
A casinha que era mais um casebre
O casebre de paredes tão frias
Com calor humano que tanto aquecia
Revestiu-se de pura magia
Mesmo naquela rua sombria
Cheia de gunas e de vícios labregos
Um casebre que emergia da mediocridade
E emergia de quase toda a cidade
A cidade que me pusera um revés
E que então eu subvertia
Com carradas de tanta empatia
O casebre que me abrigou e que eu adotei
O casebre que poderia ter sido outro
Não fosse nele toda a confluência
De amizades e experiências
Não fosse nele toda a alucinogenia
Com charros de haxixe e garrafas vadias
Não fosse ele o antro da libertinagem
Das paixões reais e das meras catarses
Não fosse a casa do Ozan e da Chiara
Não fosse a rua a Travessa das Almas.

Vladimir

Passam transeuntes
E turistas varridos
Passa a brisa
E o olhar dos mendigos
Passam cavalos
E seu ar de martírio
E as gentes esnobes
Que desfilam delírio
As notas ecoam
E invadem ouvidos
Que se fazem ajustados
Os mais providos
Cada sopro é um esforço
Um grito de alívio
Que esbugalha os olhos
E faz tremer os cambitos
Passam os carros
Seus roncos poluídos
Que lhe ofuscam as notas
Mas não lhe tiram o brilho
Passam as modas
A chuva, a neve e o frio
Passa o verão
Esmorece-se o brio
E passam os anos
E renova-se a vista
Mas no coração da cidade
Nunca passa o artista.