Wednesday, April 23, 2014

A Volúpia

Rubra carnalidade
De corpos emaranhados:
Suores e odores;
Calvário dos pudores.

A música que embriaga,
As luzes que profanam;
Na bruma dos pecados
Tombam os honrados.

Festim de anjos caídos
Na casa do Diabo;
Despejam fecalúria
No beco da luxúria.

Altar dos libertinos,
Vingança dos aflitos:
Liberam suas culpas;
Partilham o gemido.

Rabiscam cicatrizes,
Emendam os cabelos;
Libertam-se das roupas
E minam os miolos.

Temperam com suor
O caldo infernal;
Desatam todo o nó
Da conduta moral.

Tragam cada gota
Do álcool ingerido
E na dança expelido
De corpos contorcidos.

À mesa ou no lavabo
Ninguém é inocente;
O coito segue o ritmo
Do Rock and Roll antigo.

A noite é generosa
E tem amplo cardápio
E só finda na manhã
Em um qualquer divã.

Jovens malditos,
Velhos carcomidos.
Orgia musical;
Que santo é o Carnaval!

Volúpia dos sentidos,
Dos beijos foragidos.
Compassos sensuais;
Instrumentos carnais.

Cidade dos pecados;
Da prevaricação,
Da alucinogenia,
Da vil melancolia.

Transborda a libido
E os cantos proibidos;
Entorpece a misantropia
No orgasmo da utopia.


Nota: "Vagon" é o nome de um pub de Rock and Roll em Praga. Quem já o frequentou, nem que por uma vez, sabe.

Tuesday, April 22, 2014

Senhora do Leste

Perdido em ti
Eu me desvendo
Dou-me aos passos
E te congestiono
Tuas artérias
Sempre inflamadas
E sou bombeado
Do teu coração
E faço de ti prisão
Abraças-me
Arranhas-me
És a maldição
E a redenção
Perdido em mim
Desvendo-te
Vomito nas tuas passarelas
Mijo nas tuas flores
Trepo-te nos teus amores
Nas tuas multiplicações
Nas tuas encruzilhadas
Nas noites embriagadas
Tens as garras
E o encanto
Eu só tenho o vício
E o tempo
Eu me perco
Se te encontro
Viver em ti
É cortejar a morte
E desprezar a sorte
É zerar o tempo
E congelar o medo
Tua aurora de fogo
Teu semblante afiado
O teu ventre fecundo
hordas de vagabundos
Acobertada
Pelo teu manto branco
E aquecida
No recanto dos teus membros
Em cada poro da tua pele
Antros da perdição
Por onde transpiram
Os teus sabores
Nos teus licores
Pelos teus seios
Em Vinohrady
Escorrego ao umbigo
Em Staromák
Atravesso-te o cinto
Pelas tuas pontes
Forço-te a entrada
em Divoká Šarka
E nos teus fluídos
Eu me deslizo
E faço um dueto
Com o pica-pau-preto
E subo ao teu rosto
Em Hostivař
Para, num beijo
Eu me afogar
E vagueando por ti
Eu me desvendo
Mesmo perdendo
O rumo do tempo
E desnorteado
Eu mesmo me rendo
Porque ainda sem guia
Seja noite ou dia
És a melhor companhia
Onde a inspiração renasce
E a solidão aprimora
O compasso que erra
Num caminho de pedra.



Nota: a senhora, de garras e semblante afiado, só poderia ser a musa de Kafka.

Sunday, April 20, 2014

O Vinho Derramado

Soa o fado
Nos Caldeireiros
Na penumbra, no esgoto
Repentes dramáticos
Anunciam o desgosto
O amor, sempre ele,
Carrasco de corações
Recitado como orações
De súplica, de pesar
Em linguajar popular
O fado soa e faz suar
E o sangue a jorrar
E no chão a espalhar
O patriota, a esvaziar
Se desfaz em cacos
De vidro é o facho
Por um punho tombado
Enervado com o fado
Enfadado, atiçado
De Alfama à Ribeira
Sem métrica, à maneira
Soa a voz que lamenta
Com guitarras que choram
E violeiros que imploram
E a gente dos tascos
De ruelas escuras
E turistas perdidos
E estudantes falidos
E velhos olhares
Tradição em trajes
Gentrificados
E jorra o sangue
Do fascista em cacos
O patriota desfeito
Em seus mil pedaços
Porque o fado é o canto
Do amor lamentado
Do coração partido
Do povo explorado
Do obreiro oprimido
No escuro do tasco
Soa o fado
Morre o facho
Apunhalado
Pela poesia
Dos vagabundos
Dos loucos que pensam
Das ruas que exalam
O odor do passado
E escondem o futuro
Em mentes que versam
O novo mundo
Soa o fado
Morre o facho
Cantigas em versos
Revoltas em prosa
Penumbra e mofo
O vinho na mesa
De um chão que não pisa
A trupe burguesa
Arrasta-se ao esgoto
O facho, já morto
Por baixo da mesa
O sangue espreita
E o fado a soar
No rescaldo do bar
De um bairro popular.


Nota: Um bar com concerto de Fado no centro histórico do Porto, uma garrafa de vinho cai, acidentalmente, ao chão. Dá nisso.

Monday, April 14, 2014

Ode à Libanesa

No teu poncho de acordes
amanhada com a viola
manifestas o teu brilho
me arrebatas um suspiro
Semblante de esfinge
modelada com requinte
és de Minas o tesouro
de um baluarte Mouro
Num místico timbre grave
me paralisas qual curare
só a ti não sou imune
o veneno é o teu deslumbre
Entorpeces meus sentidos
se me afogo nos teus braços
o negrume dos teus olhos
me colapsa em atos falhos
És a lenda do Oriente
a minha sina tão latente
que desprotege o meu peito
enclausurado e rarefeito
O derbakke faz o Samba
numa roda de dabke
fenícia tropical
ou andina árabe?
Capricho jovial
viola campaniça
briosa e guerreira
com a chama da justiça
És a musa do meu ócio
e o tom da cantoria
não só vinho partilhamos
também sonho e ideologia
Tua vida é um canto
teu sorriso é liberdade
no teu cheiro estão as garras
que me rendem à mocidade.


Nota: há pessoas que brilham aos meus olhos e me fascinam verdadeiramente. É o caso dessa moça. Não é uma questão de sexualidade nem de beleza. É empatia.

Mercúrio

A poesia
é o mercúrio da alma
não cura a ferida
mas desinfeta a vida.

Wednesday, April 9, 2014

Libertinar

Um dia,
quando expurgar a nostalgia,
aprenderei a libertinar
em ritmo de poesia.

Monday, April 7, 2014

Poesia sem Poeta

Se ainda me restasse ternura
nestes braços sem pujança
após abraços desalmados
sem música e sem dança
Se ainda me restasse coração
nesta vida já mal sentida
de desencantos encantados
e romarias sem partida
Se ainda me restasse esperança
e o vigor da juventude
após os anos de cansaço
de um tempo sem virtude
Se ainda me restasse emoção
de uma paixão repentina
ou da fervura de dois corpos
em simbiose e adrenalina
Se ainda me restasse
a ternura e o coração
a esperança e a emoção
eu dar-te-ia uma flor
e a chama do meu amor
queimaria a razão
Mas eu já não sinto
sou pedra da ribanceira
sou orvalho matinal
e já sequer nem minto
me manifesto na frieza
como o vento invernal
Mas eu juro
pela palavra mais sagrada
de um ateu consequente
que se ainda me restasse vida
ou vontade incontida
ou a dor da saudade
e algum traço de vaidade
ou se ainda me restasse o tempo
para investir na humanidade
ou ainda a certeza
da magia e da beleza
Se eu fosse um poeta
ainda com poesia
se eu fosse um músico
ainda com melodia
A mais um erro eu cederia
e à revelia eu te amaria

Thursday, January 30, 2014

A Noite

Oh impiedosa dama
Do ócio e do breu
Da vida és a morte
Renegada pela sorte
Pelo escuro me agarras
Pela insônia me devoras
Deste mundo me resgatas
E a minha alma revigoras
Tu me perdes no infinito
Onde o tempo não tem hora
E me congelas o relógio
Até que emerja a nova aurora
É o poeta teu espólio
Do teu encanto prisioneiro
Também o é o vagabundo
Que está farto deste mundo
É o ébrio desonrado
E o gato do telhado
É a alma penitente
Que com agrado te consente
Mas tu, oh vilã das trevas
Desbotada em frieza
A mim só me consomes
Quando verso a tua beleza
Em teu seio me desmancho
E noutros mundos me recaio
És a guia, és a musa
De um amante solitário
Da loucura és o prelúdio
E o fel de mais um dia
És do sonho o amparo
No apogeu da nostalgia.

Friday, November 8, 2013

Quatro Paredes

Poucas pessoas se dão conta da vastidão entre quatro paredes. Ainda menos são as que se apercebem da luz gerada em sua escuridão. Quantas viagens são feitas às profundezas da alma, quantas visões macro fazemos da vida, dos seus fragmentos, seus detalhes aparentemente mais insignificantes. Quanto custa fazer a revelação da nossa essência? O exercício humano mais sublime é adentrar-se dolorosamente a si próprio. É a queda livre no abismo da alma que nos proporciona uma viagem onírica aos confins da vida. A solidão da madrugada, a insônia da ansiedade, o sufoco da própria existência. Não há nada mais cruel do que a própria vida sentida na sua crueza. As quatro paredes são o resumo do mundo inteiro. Imagine se pudéssemos materializar tudo o que passa por elas em forma de pensamento; a dita cuja dos nossos corações, a matéria de um exame, o vizinho mal-encarado, as ambiências musicais, as memórias de ontem, os fantasma de hoje e o medo do amanhã. É na solidão das quatro paredes que somos nós próprios. Para a maioria das pessoas é o único momento de verdade em que são elas próprias e não personagens fajutas. As paredes são opacas à mentira. Recebem-na e nos refletem de volta. Não há como fugir da realidade quando vasculhamos as próprias entranhas, quando descobrimos os nossos próprios segredos. O maior perigo da vida reside na maturidade intelectual e na lucidez. Elas sufocam-nos. Estivéssemos sempre embriagados, a la Baudelaire, não temeríamos adentrarmo-nos porque seríamos feitos de embriaguez, de loucura. A loucura é a única salvação para as querelas da mente; todo o resto é autoflagelação. Quanto mais divagamos, quanto mais questionamos e quanto mais descobrimos, mais dor sentimos, mais perdidos ficamos. Ignorantes não tendem à melancolia. A vida fútil é a proteção natural dos covardes que não se encaram sequer a si próprios, quanto mais ao mundo que os rodeia. As paredes dos seus quartos teimam em lembrar-lhes disso diariamente, mas há quem tenha o dom da indiferença. Sim, a indiferença é um dom! A sensibilidade é uma maldição! As paredes do meu quarto são indiferentes. Nunca as vi chorar, nunca as vi lamentar, nunca as vi deprimidas. Estão sempre imponentes, fortes e duras. Sempre frias. Sempre silenciosas. Ouvem muito e me respondem sem qualquer piedade.

A Voz do Silêncio

As pessoas falam, falam. Suas vozes são irritantes, sufocam-me. Falam e não dizem nada. Só resmungam. Não se apercebem de que incomodam. Como se a verborragia fosse remédio. As palavras não são absorvidas, o sentido do que dizem desfaz-se no ar. Nos meus ouvidos só entram sons agudos que me aguçam o peito e me fervem a cabeça.

A culpa é do silêncio; ele fala demasiado. Fala tanto que qualquer outra voz satura a minha paciência. O silêncio ensurdecedor, desconfortante. O silêncio das paredes, na penumbra. O silêncio das ruas infestadas de carros. O silêncio de uma repartição pública. 

Falam comigo como se eu fosse obrigado a lhes engolir. Falam e querem ouvir falar. Não reparam no que diz o silêncio, muito mais profundo e revelador. A voz é o pensamento codificado. O silêncio é totalmente despido, transparente. Não divaga por entrelinhas; escancara com crueza.

A cadeira sendo arrastada. A gata no cio. O telefone tocando. Tudo ao mesmo tempo ou não. Muitas ou poucas vezes. São vozes! Cada manifestação delas é uma dosagem a mais, uma overdose, que se acumula, acumula. E gera silêncio. O meu silêncio, tão esclarecedor, tão transparente. E ninguém repara. Porque querem ouvir aquilo que só podem ver.

A Mente

A mente,
que mente, novamente, ciente.
Mente a mente, de repente,
a mente quente que sente,
à frente à tangente,
a mente, solvente, em dor latente,
sente a mente como a si mente.
Calmamente, acalma a mente,
à frente sente, sem que tente, realmente,
que infeliz é a mente, infelizmente.

A Pirataria

Fazer pirataria é fazer arte
arte contra o lucro
arte pela arte
Subvertendo um produto morto
devolvendo-lhe a vida
voltando a ser arte
nem embalada
nem consumida

A Realidade

Abraçado por paredes
na penumbra do tempo
no rescaldo das luzes
no eco do silêncio
afundado na elevação da mente
nas profundezas das altas translações oníricas
eu, longe de mim,
corpo largado de alma em transe
fecundo sonhador de realidades distantes
quando acordarei para este sonho?
sugado pela estante de livros
sou poeta de uma lucidez absurda
sou boêmio de sobriedade mórbida
Ora, quem sou, senão um pássaro acanhado
com asas enferrujadas entre quatro paredes?

O Inverno

O silêncio, ensurdecedor,
pairando nesta lacuna emparedada;
ruidoso e pesado,
gélido e implacável.
O decoro do vazio,
cores desbotadas pela ausência de vida
nesta morte moribunda
que, preguiçosa, arrasta-se ao destino.
Penumbra ofuscada por raios de nostalgia
que vislumbram um passado tão ausente quanto este dia sem futuro,
flutuando no abismo noturno.
Figura caricata consumida pela lucidez de um relógio surdo,
que ignora o choro e a súplica.
Cubículos orwellianos,
alma engavetada em ficheiro de concreto,
contemplando a imensidão da própria insignificância.
Fugitivo que regressa a uma prisão sem grades,
voluntário da solidão,
enrolado nos cobertores do medo,
protegendo-se do frio da alma;
rajadas de vida certeiras
que ardem como o calor de uma morte anunciada.